O aventureiro Decio Macedo, de 50 anos, profissional da área de T.I., resolveu se aventurar pelas estradas do Pará a bordo de uma BMW R 1200 GS. Foram 6.344 km rodados em 12 dias. Acompanhe essa aventura cheia de particularidades nas palavras do próprio viajante

 TEXTO E FOTOS: DECIO MACEDO

O relato

A frase que mais tenho ouvido ultimamente é: “Você é maluco?”. Na verdade, em nenhum instante pensei que estivesse fazendo alguma loucura, pelo contrário. A viagem que planejei parecia ser muito simples se comparada às outras que estava acostumado a acompanhar pela Moto Adventure, revista especializada em matérias dessa natureza. Eu estava acostumado a pilotar motos esportivas por pelo menos 10 anos. Fazia trackdays e passeava com os amigos na região de Morungaba, Amparo e Serra Negra. Então este ano tomei a decisão de vender minha esportiva e comprar uma big trail, e me aventurar.

Nada que um bom planejamento e muita vontade de conhecer esse “mundão” não resolvesse. Mas é que no meio em que vivo, nas reuniões com colegas de trabalho sempre discutindo assuntos relacionados à área de Tecnologia da Informação, quase ninguém costuma planejar uma viagem como essa, ainda mais se for para fazê-la sozinho. Até lá, meus planos eram compartilhados com minha esposa e os três filhos, todos já crescidos, sendo que um deles, inclusive, faria parte deste processo em algum momento da viagem. Enfim, imerso nesse ambiente corporativo muitas vezes angustiante – e quem fizer parte dele entenderá – chegar em casa depois de um dia “pesado” de trabalho, olhar no calendário e ver que no dia seguinte eu estaria na estrada, fez meu coração bater mais forte. Preparar as malas, vestir minha jaqueta e calça de cordura, e sozinho partir de férias em direção à estrada. Isso não tem preço!

A ideia era sair de Jundiaí (SP), cruzar a reserva do Xingu e chegar até o Pará. Com base nisso montei o roteiro. No primeiro dia sai de Jundiaí em direção a Santa Fé do Sul (SP) – divisa com Mato Grosso do Sul – num trajeto de 598 km, sendo que a maior parte do trajeto foi realizado à noite. No dia seguinte o plano era chegar a Espigão do Leste, no norte de Mato Grosso, porém, só durante a viagem que descobri que o asfalto terminava 100 km antes de chegar a Espigão do Leste. O sol já estava se pondo quando acabou o asfalto. Percebi que a moto estava derrapando muito e decidi murchar os pneus para melhorar a estabilidade. No trajeto, já de noite, assustei-me com uma anta cruzando meu caminho. A partir deste episódio, percebi muitos animais silvestres mortos na beira da estrada. Tatus, tamanduás, seriemas, etc., e fiquei mais atento para isso.

Cheguei a Espigão do Leste por volta das 20h, depois de percorrer 1.204 km neste dia, sendo que 100 km era de terra. Dormi num hotel de beira de estrada. Naquela vila não existia asfalto algum, e no dia seguinte, quando fui abastecer a moto, descobri que a gasolina custava 5,60 o litro. Meu próximo destino seria São José do Xingu, a 100 km dali, num percurso inteirinho em estrada de terra. Chegando lá por volta das 9h, abasteci a moto e perguntei quantos quilômetros eu teria de percorrer para chegar ao asfalto. Foi aí que descobri que eu teria mais 280 km de terra pela frente…

Desistir, jamais!

Vinte e cinco quilômetros mais tarde, após ter saído de São José do Xingu, de repente caí num buraco. A pancada foi forte, mas não me derrubou, e torci pra não ter acontecido nada com a moto, porém o painel começou a indicar que a pressão do pneu caia constantemente. Parei a motocicleta para analisar e vi que a roda dianteira estava severamente amassada. Decide retornar para São José do Xingu, já pensando que, com isso, a viagem teria terminado. Chegando à cidade encontrei uma borracharia, pegamos um pedaço de madeira e uma marreta e tentamos resolver o problema no improviso, apoiando a madeira no pedaço amassado da roda e batendo com a marreta, pois num lugar como aquele, encontrar uma roda de BMW seria um milagre. Feito isso, depois do borracheiro jogar detergente na roda, ele verificou que não havia vazamento. Animado, retomei meus planos, calibrando o pneu, enchi o tanque e voltei para a estrada, depois de quase desistir. Mais adiante comecei a cruzar a reserva do rio Xingu, e atravessei o rio de balsa, vendo ao redor uma paisagem deslumbrante, numa região pouco povoada desse nosso país. Rio extenso, de águas calmas e esverdeadas. O governo deu a balsa para os índios, que a opera cobrando uma taxa de R$ 50,00 para as motos.

Resolvi tirar uma foto da moto. Curiosamente, um índio que estava ali por perto, vendo que saiu na foto, ao fundo, cobrou-me R$ 10,00 por ela.  Descendo da balsa, peguei novamente alguns quilômetros de terra até conseguir chegar numa venda à beira da estrada. Percebi que meu pneu estava murchando de novo, embora lentamente. Seguindo, encontrei uma vendinha na beira da estrada e adentrei para matar minha sede, pois calor era grande. Lá dentro, apenas três pessoas assistiam a final da Copa do Mundo, disputada entre França e Croácia. Perguntei se por ali havia alguma borracharia. Sem tirar o olho da televisão, o dono do bar respondeu que eu tinha de rodar 70 km para encontrar uma, e caso meu pneu murchasse de uma vez, eu poderia pedir ajuda para algum caminhoneiro, pois eles tinham compressor para enchê-lo. E lá fui eu, no meio do nada, em plena reserva do Xingu, debaixo de um calor de 34 graus, em busca da borracharia, enquanto o mundo parava para ver a final da Copa.

Encontrei uma borracharia ao lado de um botequinho bem simples, ambos administrados pela mesma família.  O curioso é que, depois de matar a sede, bebendo muita água, fui convidado por eles para almoçar, e aceitei. Estávamos em 12 pessoas. Parte de minha aventura era justamente interagir com as pessoas da região e conhecer o lado simples de brasileiros que moram em lugares tão longínquos do país.  Muito agradecido, me despedi, percorrendo pelo menos uns 40 km até chegar numa estrada de asfalto na cidade de Matupá (MT).

Percebi que, por causa da roda amassada, minha moto vibrava muito, além de perder a pressão no pneu. Decidi manter o roteiro original apontando para o norte, e ir para Castelo dos Sonhos (PA), passando pela Serra do Cachimbo. Encontrei na cidade pequena, quase perdida no mapa, uma lanchonete, e por ali resolvi fazer uma refeição. Enquanto comia, puxei conversa com um senhor que estava ao meu lado. Reparei que de vez em quando ele esfregava as mãos sobre a costela, visivelmente incomodado. Perguntado sobre isso, ele me contou uma história que me arrepiou os cabelos e me encheu de vontade de sair dali. Disse que tinha levado um tiro e ainda sentia dor. “A gente não pode permitir que um sujeito bata na nossa filha, né? Dei um jeito nele, agora não está mais aqui pra contar a história, mas o diacho é que ele me feriu”.

Sim, eu estava num desses rincões quase esquecidos do Brasil, vendo realidades muito diferentes da minha, aprendendo e me surpreendendo com os detalhes. No dia seguinte, ao amanhecer, eu tinha em mente partir em direção à cidade de Sinop (PA). Seriam 442 km até lá, mas resolvi mudar o roteiro e dar uma esticada até Cuiabá (MT), ou seja, fiz 920 km em um dia. Durante esse trajeto, tive de calibrar o pneu pelo menos umas cinco vezes porque ele continuava vazando. Cheguei de noitinha, exausto, e fui para o “Getúllio Hotel” dormir, até que o dia clareasse e eu pudesse ir atrás do conserto da roda. Eu tinha um bom motivo para estar preocupado. Eu havia combinado com meu filho de que nos encontraríamos no aeroporto de Cuiabá. Ele viria de avião para compartilhar parte da viagem comigo. Foram dois dias para comprar as peças e conseguir consertar a moto. Feito isso, pude relaxar e me encontrar com meu filho para juntos pegarmos a estrada até a Chapada dos Guimarães.  Ficamos na Pousada Cambará. Ela era um pouco afastada do centrinho da cidade. Um lugar onde podíamos observar diversos pássaros da região. Visitamos o parque da chapada e tomamos banho de cachoeira, depois fomos conhecer a cachoeira do “Véu da noiva” que é formada pelo rio Coxipó, com seus 86 metros de queda livre, para em seguida vermos o pôr do sol no “Mirante Alto do Céu”, considerado um dos três pontos mais bonitos do país para a ocasião. De lá, temos a vista completa de Cuiabá. Fizemos nossos passeios e uma boa refeição à noitinha. Eu tinha planos de conhecer ainda mais os arredores na manhã seguinte, até que eu descobrisse que estava faltando um raio, dessa vez, na roda traseira.

Segue o fluxo

Tive de retornar à Cuiabá para reparar o problema. Só depois então pude apontar para Bonito (MS). Eu e meu filho percorremos 563 km da Chapada dos Guimarães até São Gabriel do Oeste (MS). Dormimos num hotel de beira de estrada e no dia seguinte andamos 449 km até Bonito. Chegamos por volta das 13h e nos hospedamos na Eco Pousada Villa Verde. Entre os passeios que fizemos por lá, destaco o “Buraco das Araras”, que é uma “dolina” considerada a maior da América Latina, com seus 127 metros de profundidade e 500 metros de diâmetro. Por ali encontramos uma grande concentração de Araras vermelhas, formando seus pares e construindo ninhos nos paredões rochosos de cor avermelhada.

No dia seguinte fomos fazer um passeio de flutuação no rio Sucuri. Vimos a nascente do rio e suas águas translucidas que refletem uma cor meio azulada, e na qual podemos ver diversas espécies de peixes. Para se chegar até lá foi preciso entrar numa fazenda (propriedade privada). Todos esses passeios são pagos e feitos com guias, também precisam ser reservados com antecedência, pois existe limite do número de pessoas. Há 8 km de Bonito podemos visitar a gruta de São Mateus. Do lado da gruta existe um pequeno museu (Kadiwéu) com alguns animais típicos da região empalhados, e alguns objetos que remetem a história de Bonito. No período da noite fomos ao centro conhecer o aquário da cidade, onde existe uma coleção dos principais peixes da região. Deixamos para o último dia a visita na Lagoa Misteriosa, com suas águas cristalinas com mais de 220 metros de profundidade.  Ninguém até hoje sabe ao certo em que profundidade ela termina.  Pude mergulhar e sentir sua temperatura aprazível de 22 graus.

Encerrei o passeio com um jantar especial – pirarucu ensopado, no simpático restaurante “Casa do João”, lugar com uma bela decoração e uma lojinha de artesanato com produtos típicos da região. Na manhã seguinte, me despedi de meu filho, deixando-o no aeroporto de Bonito. Dali, parti sozinho, apontando a proa para Jundiaí e percorrendo 1.176 km até chegar em casa. No total, rodei 6.344 km em 12 dias. Compartilhando isso com meus colegas de trabalho e outras pessoas não acostumadas com viagens de motos, ouvi muitas exclamações de que eu tinha sido louco de atravessar a reserva do Xingu completamente sozinho. Sei que muitas pessoas fazem viagens de motos talvez até mais radicais que a minha, mas o fato é fiquei feliz comigo por ter feito o que fiz, e isso é o que importa. Maluco, eu? Sim, por motos!

Retornei para minha casa, não cansado, mas sim, revigorado, feliz e pensando na próxima viagem!

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