Entrevista-Ricardo-Lugris

Após 43 anos de trabalho, dos quais, quase 40 voltados à área comercial da aviação, Ricardo Lugris acaba de se aposentar. Apaixonado por motos, já percorreu mais de 100 países, viagens as quais lhe renderam 7000 mil km percorridos em cima de duas rodas e destas viagens, escreveu dois livros.

O primeiro foi “Tempo em Equilíbrio”, resultado de suas reflexões ao longo de seis meses quando viajou sozinho da Franca, onde vive, até o Sudeste Asiático, passando pela Sibéria, Cazaquistão, Mongólia, Japão e outros países. O segundo, recém lançado no Brasil, é “Montar e Partir”, que tem como ponto de referência uma viagem pelo Cáucaso e traz flashbacks de outras viagens realizadas em momentos diferentes de sua vida por outras regiões e lugares do planeta.

Aqui você acompanha a entrevista completa, que complementa a reportagem publicada na Moto Adventure 253 (dezembro – 2021).

Boa leitura.

Entrevista – Ricardo Lugris

Moto Adventure – Você acaba de se aposentar. Antes de mais nada, conte aos nossos leitores qual era tua atividade profissional. Fale um pouco sobre isso.

Ricardo Lugris – Durante quase 40 anos eu atuei na venda de aeronaves comerciais, 33 anos como executivo da Embraer e os últimos 6 anos como Vice Presidente de Marketing de uma empresa de Leasing dinamarquesa. Em meu trabalho, a viagem internacional foi sempre uma constante, levando-me a lugares e países distantes e, algumas vezes, quase desconhecidos. Decidi aposentar-me após 43 anos de vida profissional para poder, assim, dedicar-me às viagens de motocicleta em ciclos de duração mais longos e, obviamente, poder escrever sobre essas experiências, uma de minhas grandes paixões.

Moto Adventure – De onde vem esta tua ligação com o moto-turismo? E por que de moto? Você poderia tranquilamente ter optado pelo carro… O que tem de tão encantador e diferente em uma viagem de moto?

Ricardo Lugris – A ligação com a moto remonta à minha infância onde sempre me senti atraído por esse veículo estranho que desafia as leis da gravidade. Sempre quis ter minha motocicleta, o que acabou acontecendo aos 19 anos quando consegui comprar uma, apesar da forte oposição de meu pai.

A viagem sempre foi uma obsessão para mim, tendo iniciado viagens “de carona” com uma mochila e uma barraca, pela América Latina, com apenas 15 anos. Conjugar a viagem e a moto, foi apenas natural para mim.

E por que a moto e não o carro? Porque na moto, você está exposto aos elementos, ao frio, ao calor, ao vento, aos perfumes e aromas. Em um carro você está em uma espécie de aquário, insosso e inodoro. Na moto você percorre e tem o prazer desse percurso, no carro, você apenas quer chegar a seu destino o quanto antes.

Moto Adventure – Teu primeiro livro foi “Tempo em Equilíbrio”, no qual relatou uma viagem de 35 mil km entre Paris e Singapura. Fale um pouco sobre esta obra.

Ricardo Lugris – Meu primeiro livro, Tempo em Equilíbrio, foi o resultado de minhas reflexões ao longo de seis meses de viagem em solo, desde a Franca, onde vivo, e o Sudeste Asiático, passando pela Sibéria, Cazaquistão, Mongólia, Japão e outros interessantes países. Nesse livro, hoje esgotado, mas que deve ser reeditado brevemente pela Editora Europa, eu traço uma interessante indagação sobre a relatividade do tempo em um período em que minha vida permaneceu realmente em equilíbrio e não somente sobre a moto. Nesse livro, como é de hábito em meus relatos de viagem, faço o leitor viajar comigo por destinos exóticos ao mesmo tempo em que o induzo a uma natural reflexão sobre sua própria vida. Escrever tem o dever e o objetivo de poder inspirar.

Moto Adventure – Você acaba de lançar “Montar e Partir”. Eu quero que você também comente sobre este livro, que relata sua jornada pela região do Cáucaso.

Ricardo Lugris – Diferentemente de “Tempo em Equilíbrio”, meu segundo livro, “Montar e Partir”, tem como ponto de referência uma viagem pelo Cáucaso e traz “flashbacks” de outras viagens realizadas em momentos diferentes de minha vida por outras regiões e lugares do planeta. Aqui, minha reflexão para o leitor é a respeito das mudanças que a viagem aporta ao viajante e, sobretudo no fato de que a viagem jamais se termina: ela permanece sempre no interior de quem a realizou.

Moto Adventure – Qual foi o momento mais complicado desta viagem?

Ricardo Lugris – Há pessoas que escrevem sobre suas viagens e gostam de se concentrar nos momentos mais difíceis, complicados ou mesmo, arriscados ao longo de suas jornadas. Eu, prefiro concentrar minhas observações e relatos naqueles episódios enriquecedores cotidianamente no contato com pessoas e na análise de suas culturas.  Em todo caso, nessa viagem tive dois momentos peculiares.

O primeiro, em pleno deserto no Azerbaijão, eu percorria um caminho sem asfalto a uma velocidade em torno dos 70 km/h quando, sem aviso, percebi que havia uma enorme vala cruzando essa pista. Com uns três metros de largura e uns 40 cm de profundidade, o obstáculo era real. Fui obrigado a ficar em pé na moto e tentar saltar essa vala. A roda dianteira felizmente passou o buraco, mas a traseira caiu no desnível por causa do peso dos bagageiros e a moto saltou de forma inesperada. Foi bastante delicado controlar a aterrissagem, o que consegui a duras penas, com direito a joelhos tremendo e uma forte carga de adrenalina. Uma queda ali, em um lugar totalmente remoto, poderia ter tido consequências muito sérias.

Outro momento curioso, foi na divisa entre a Armênia e o Azerbaijão, fronteira tensa entre dois países que se detestam a força de disputas territoriais que acabaram em guerras sucessivas, a última delas, em 2020, menos de um ano depois de minha passagem.

Enquanto percorro uma pequena estrada entre arame farpado e torres de vigia com soldados de ambos os lados, percebo que sou observado desde o alto por militares que acompanham minha moto com a luneta de seus fuzis de longo alcance. Confesso que é uma sensação estranha ter uma arma apontada para si. Preferi acreditar que estes soldados, entediados pelas longas horas de guarda, apenas queriam admirar a motocicleta do viajante.

Moto Adventure – O que é mais difícil de lidar em uma viagem longa?

Ricardo Lugris – As contas para pagar no retorno… Falando sério, uma viagem mais longa tem a vantagem de permitir ao viajante uma relação muito mais ampla com o percurso, sem se preocupar realmente com o calendário, ou seja, pode aproveitar mais daqueles lugares que realmente lhe agradam. Por outro lado, em uma viagem cuja duração é mais longa, o viajante precisa saber administrar sua fadiga que, de uma certa forma, é cumulativa. Eu costumo fazer uma pausa completa da moto a cada três ou quatro dias. Permaneço tranquilo por todo um dia, como um turista comum e corrente, sem rodar de moto, apenas passeando, lendo ou curtindo uma praia, se houver uma.

Moto Adventure – Você já percorreu mais de 100 países, somando mais de 700 mil km. O que te motiva, ainda, a continuar viajando de moto?

Ricardo Lugris – Os números indicados na pergunta são apenas referenciais e têm pouco valor para mim. A viagem não se mede realmente em lugares e distâncias e sim, no volume de sentimentos e emoções que elas provocam em você.  Assim, eu quero, eu preciso continuar me emocionando, descobrindo, aprendendo e assimilando o que vejo ao longo de minhas viagens. Simplesmente não estou preparado para interromper esse processo. Pelo contrário, com mais tempo agora que terminei minha vida profissional, pretendo viajar mais, por mais tempo e mais longe.

Moto Adventure – O que passa em tua cabeça quando você conclui uma viagem? Satisfação ou aquela sensação de “e agora, que completei mais essa”?

Ricardo Lugris – Conto em meu primeiro livro que ao chegar de viagem costumo sentar-me à mesa de um café na cidade onde moro, abrir um mapa do mundo e começar a pensar na próxima.  Obviamente a viagem incorpora, como disse antes, sensações e emoções que ficarão em você. Indico em “Montar e Partir” que, tenho a convicção de que a viagem não se termina jamais. Ela, por tudo o que aporta ao viajante, permanece em nosso interior para sempre.

Moto Adventure – O que vem pela frente, agora que você, ao menos em tese, tem mais tempo? Pretende chegar à marca de 1 milhão de km sobre duas rodas? Existe algum lugar do planeta que tuas rodas não tenham conhecido?

Ricardo Lugris – Tenho um projeto simples em mente que pretendo colocar em prática assim que terminar o processo de encerramento de minha vida profissional que será a viagem durante um ano a ser iniciada, possivelmente em junho de 2022. Há duas possibilidades: Uma volta ao mundo ou uma viagem desde o Alaska ao Yukon, passando por Ushuaia, quer dizer, uma ida e volta aos extremos das Américas. Confesso que a segunda possibilidade, levando em consideração a situação mundial, me seduz mais neste momento.

Como disse antes, não estou muito preocupado com o número de quilômetros a serem percorridos, prefiro privilegiar a qualidade da viagem que deve sempre ser somente para mim, e não por mera publicidade social.

Obviamente, há muitos lugares que ainda não percorri e que ainda pretendo visitar enquanto tiver meios e condições de saúde e, também há aqueles lugares que já visitei mas que merecem uma nova apreciação com mais tempo e com profundo interesse. Na verdade, trata-se de um ciclo interminável, infinito, onde tudo dependerá de nossa própria vontade.