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Encarando os encantos e os desafios que só a Índia apresenta, nosso leitor nos leva para uma fascinante jornada pelo Himalaia, percorrendo a estrada mais alta do mundo, o Khardungla.

Texto e Fotos: João Luiz Marques da Silva

Após participar de uma viagem ao Leste Europeu, por uma obra do destino e das coincidências da vida, surgiu a grande chance de conhecer e desbravar aquela que é considerada a mais alta estrada transitável do mundo: o Passo Khardungla, a 18.380 pés acima do nível do mar, ou, “meros” 5.602 metros.

Tudo começou no dia 25 de agosto de 2017, quando peguei um voo de Munique para Nova Deli, uma jornada de 6.000 quilômetros, que terminou no gigantesco aeroporto Indira Gandhi, que ostenta a marca de 40 milhões de passageiros-ano e impressiona pelo seu gigantismo e belas instalações.

O cartão de visita e a primeira impressão foram positivos, mas naquele momento eu não imaginava o me esperava nos dias que se seguiriam. Às 5h40 embarquei para Leh, região de Ladhak, na Caxemira, em um voo de 3 horas de duração, onde aí sim, comecei a ter contato com a realidade indiana.

A chegada à região é impactante em função das cadeias de montanhas, suas altitudes, a neve eterna e o avião voando abaixo daquele forte visual da natureza. Aquela primeira impressão da capital ficou para trás e a nova realidade começava a mostrar um local com forte presença militar, veículos muito velhos, cidade e povo estranhos para nós e os primeiros efeitos no corpo provocados de uma altitude de 3.500 metros. Literalmente de tirar o fôlego.

Após um rápido percurso em uma van, cheguei ao hotel onde me esperavam os outros brasileiros, corajosos companheiros de viagem: Eduardo Generali, de Itu (SP), Mauro, de Campinas (SP), Luiz, Daniel e Bruno de São Paulo (SP), Odir, de Sorocaba (SP), Gustavo, de Uberlândia (MG) e Carlos e Osmar, ambos do Rio de Janeiro (RJ). Foi nesse mesmo hotel em Leh, o Himalayan Retreat, que conheci o rider indiano Vir Nakay, que nos levaria para conhecer as desafiadoras estradas e os inimagináveis caminhos pelo Himalaia da Índia.

Na apresentação e entrega das motos, surradas Royal Enfield Classic de 500 cc, tomei contato com duas frases que me acompanhariam durante toda a viagem e que nunca mais esqueceria. A primeira, “na Índia, as distâncias significam absolutamente nada”; a segunda, “aqui (na Índia) as motocicletas não são respeitadas pelos demais veículos; todo cuidado é pouco, muita atenção”.

Motos entregues, primeiras adaptações de um corpinho de 1m94 de altura e 120 quilos, em cima de uma motocicleta bem diferente das BMW R 1200GSA que estou acostumado a rodar, e lá fomos nós encarar a mão inglesa, o trânsito indiano, as estradas e locais dos mais diferentes até então conhecidos. A cada quilômetro rodado, uma experiência nunca antes vivida, mesmo já tendo me aventurado pela África, América do Sul, Central e outros locais que não ofereceram condições de primeiro mundo.

Partindo de Leh, após os primeiros 50 quilômetros do primeiro dia, já havia percebido o que teríamos pela frente, seja com relação ao povo, à comida, aos pontos de apoio, à cultura, à moto e aos caminhos por onde obrigatoriamente teríamos que passar.

Neste dia precisamos de 8 longas horas (!) para percorrer somente 140 quilômetros e chegarmos a Nubra, a maior parte delas consumidas em diversas paradas em postos de controle, na disputa por espaço em suas estreitas estradas, e no duelo com pedras de todos os tamanhos que se precipitavam das encostas, inclusive algumas que chegaram a interromper o trânsito após uma pequena avalanche.

Já no meio dessa incrível jornada, as palavras do Vir tornaram-se a mais absoluta verdade: “na Índia, distâncias significam nada”.  E foi com este eco em minha mente que alcançamos um dos pontos altos dessa aventura, com a desculpa do trocadilho: o Passo Kardhungla, com seu cume a insanos 5.602 metros. Existe uma controvérsia com relação a essa altitude, onde alguns defendem que o correto são 5.359 metros mas como motociclista, confesso que sendo uma ou outra, a dificuldade para alcançá-la, tornou esta controvérsia irrelevante e só aumentou minha satisfação em ter conquistado mais esse grande feito no meu currículo motociclístico.

Após meia hora no topo, o simples ato de subir e descer da moto já se tornam um grande esforço. Àquela altitude, um passo mais comprido faz com que nos sintamos no fim de uma maratona, mas tudo isso foi compensado pela conquista do ponto extremo da mais alta estrada transitável do mundo.

Chegava o momento de começar a descer em direção ao nosso destino final que era o Vale do Nubra. Esse trecho morro abaixo, nos reservaria grandes emoções em função das condições da estrada, dos visuais encontrados e do cansaço. Judiados pelo esforço dispendido no difícil caminho enfrentado, o pernoite a 4.500 não foi dos mais reconfortantes.

Hospedamo-nos no Royal Desert Camp, onde dormimos em barracas especialmente montadas para visitantes, com banheiro no mais puro estilo indiano, que nos reservou algumas surpresas curiosas. Uma vez instalados e exaustos, aguardamos um difícil jantar dadas as condições de condimentos e opções de comida, e a seguir, fomos dormir cedo para recuperar as energias dispendidas em nossa curta mas extenuante jornada.

Deitado em um colchão, que era o que tínhamos para aquele momento, vieram à mente vários dos momentos vividos ao longo dos 140 quilômetros daquele dia e com as palavras de Vir Nakay ecoando em minha cabeça, adormeci.

O que está ruim, sempre pode piorar

Depois de uma razoável noite de sono, já que o corpo reage de estranhas formas a altitude, iniciamos a volta pelo mesmo caminho, já que essa, como várias outras estradas na Índia, são únicas. Mesmo assim, pareceu um trecho totalmente novo, e voltamos a levar de 7 a 8 horas para vencermos o retorno a Leh.

E chegava mais um dia tão esperado quanto o primeiro, com 170 quilômetros a serem percorridos em difíceis condições até o incrível Lago Pangong Tso. Esse espetacular lago de água salgada tem 134 quilômetros de extensão com 5 quilômetros de largura em sua parte mais larga e fica localizado entre a Índia e o Tibete, estando 60% da sua área na China. Apesar da água salgada e de sua grande extensão, no inverno ele fica 100% congelado.

Esse dia foi realmente marcante, com temperaturas entre 3 e 12 graus, onde após longas 8 horas de estrada, acampamos no Yak Camp, que fica à beira do Pangong Tso, a 4.350 metros de altitude. No jantar foi difícil se escolher algo para comer que agradasse o paladar. Na hora de dormir, sentia-me tão mal que gravei um vídeo registrando as dificuldades corpóreas. O efeito da altitude mexia muito com a pressão, dando um grande sono mas que não te permite dormir de fato; a cabeça doía muito e parecia que as têmporas estavam sendo apertadas por uma morsa; um enjôo danado, vontade e necessidade de comer, mas sem condições de fazê-lo, além de termos o gerador desligado às oito da noite. Não foi fácil, mas uma vez mais, foi uma experiência marcante que deixou muitas históricas.

Mas isso ainda não tinha sido o pior. No dia seguinte voltando, após os primeiros 80 quilômetros, enfrentamos uma mudança abrupta do tempo: começou a chover e depois a nevar, e onde no dia anterior havia pedras e grama, tornou-se um campo de neve cuja beleza branca contrastava com um frio que congelava nossas mãos e castigava nossos ossos. No auge dessa situação, formou-se um congestionamento na estreita estrada, onde dois caminhões do exército, seguidos por um grande comboio militar, insistiam em passar onde nem um passaria. A situação ficou tão complicada que nem as esguias Royal Enfield conseguiam passar no meio ou laterais dos veículos parados de forma irregular e desajeitada. Enquanto a umidade nos judiava por todos os lados, a neve caía mansa e constantemente sobre nós e a fumaça dos escapamentos envolvia nossos corpos em meio a um festival de buzinas interminável. Um cenário dantesco.

Depois de quase meia hora nessa condição os veículos se movimentaram um pouco, criando condições para que saíssemos daquele caos.

Chegamos a Shangri-la, que como no filme Horizonte Perdido, significou um ambiente de felicidade e saúde. Extenuado, sem sentir as mãos e com os sentidos um pouco abalados, levei uns 20 minutos para começar a sentir os dedos das mãos mas pouco a pouco fui me recuperando até voltar a ter condições de beber um chá quente e resgatar as forças que me fariam vencer a metade do caminho que ainda tínhamos pela frente.

A descida final, uma vez mais até Leh, foi gratificante e bem menos exigente, já que deixamos para trás a chuva, a neve, o frio, e baixamos para 3.500 metros de altitude, uma condição bem melhor que as anteriores.

No balanço desses dias passei a respeitar a marca Royal Enfield e classificar essa moto como uma destemida guerreira, pois para enfrentar as diversas e mais variadas condições do Himalaia, não sei se outra moto conseguiria. Foi uma grande experiência pilotar essa máquina e conseguir vencer tudo o que vivemos.

Após tudo isso resolvi antecipar em um dia a ida para Nova Deli para conhecer melhor e com mais calma essa gigantesca cidade com tanta história para ser conhecida e locais para serem visitados.

E para encerrar essa maravilhosa viagem fomos até Agra conhecer o famosíssimo Taj Mahal, uma das maravilhas do mundo moderno, patrimônio da Humanidade pela Unesco e uma obra incrível que levou 21 anos para ficar pronta, isso antes de 1.660. Ele foi construído como prova do amor do imperador Shah Jahan para a sua esposa favorita.

E dessa forma completei mais uma viagem de moto pelo mundo. Foram poucos quilômetros rodados quando comparados a outras viagens, mas que trouxeram todos os tipos de situações, e que confirmaram as palavras de Vir Nakay: na Índia, as distância significam nada.

João Luiz Marques da Silva, 61 anos, é administrador, trabalha no segmento do agronegócio, casado há 36 anos, pai de 4 filhos, avô de 2 netos e motociclista por paixão.