Colocamos frente a frente uma versão 1995 e uma 2019/2020 para tentar entender o que o tempo tratou de fazer com este mito
Texto: André Ramos
Fotos: Edgar Klein
Em 1982, o francês CirylNeveu conquistava para a Honda sua primeira vitória no então e já lendário Rally Paris Dakar, a bordo de uma XR 500. Quatro anos mais tarde, Neveu voltaria a se encontrar com a vitória, novamente pela Honda, mas desta vez, pilotando uma motocicleta que fora desenvolvida com foco totalmente na competição: a NXR 750V – em segundo lugar ficaria GilesLalay, que alguns meses antes, havia entrado para a equipe.
A partir daí a Honda seria imbatível até 1989 e este sucesso fez com que a marca nipônica decidisse capitalizar os êxitos na prova. Foi então que em 20 de maio de 1988 surgia a XRV 650 AfricaTwin (batizada internamente de RD-03), motocicleta equipada com um motor bicilíndrico em “V” (daí o “Twin”), que desenvolvia 57,7 cv. Devido ao tamanho de seu tanque (25 litros) o projeto quase que teve de ser interrompido, pois sua porção inferior acabava ficando mais baixa que os carburadores, o que obrigou os engenheiros a desenvolverem uma solução às pressas, utilizando 4 chapas de aço, em vez das três normalmente usadas na fabricação da peça.

Em 1990, surgia a XRV 750, motocicleta cujos 100 cm3 a mais de capacidade ao motor, fazia com que, agora, sua potência chegasse aos 62,8 cv, mas este ganho veio acompanhado também de mais massa, fazendo com que esta segunda versão ficasse 22 kg mais pesada, o que fez com que alguns passassem a criticar a decisão da Honda, dizendo que esta havia distanciado a motocicleta de suas origens.
Em 1993 viriam novas mudanças: a moto recebeu um novo quadro, tanque e assento mais baixos e também, novos gráficos para marcar esta nova fase e finalmente, em 1996 recebeu suas últimas pequenas alterações (RD-07), permanecendo inalterada até 2003, quando foi aposentada.
Mas em 2014 a Honda, após algum mistério, anunciou o renascimento da motocicleta. Apresentada inicialmente no Salão de Milão (EICMA) daquele ano, a nova noto agora recebia o nome de CRF 1000L AfricaTwin, demonstrando que sua matriz genética havia mudado, passando a ter referências na linha off-road da motocicleta, apresentando um viés mais racing, mais agressivo, este representado tanto pelas características mecânicas e ciclísticas, como também, por sua aparência.
Segundo explicações divulgadas pela Honda à ocasião do lançamento, a nova AfricaTwin continua com suas raízes fincadas no rally, mas agora, assentadas na CRF 450 Rally, motocicleta utilizada pelos pilotos oficiais de fábrica na disputa do Mundial de Rally Cross Country e do Dakar. E isso abriu uma distância tão grande para a versão anterior quantos os anos que separam as duas versões.
Anos 90
De propriedade do empresário Luiz Fernando Moura, a XRV 750 AfricaTwin de 1995 que empregamos neste comparativo está tão impecável que o exercício de admirá-la nos conduz inevitavelmente a memórias passadas; dá quase para escutar alguma banda de Seattle mandando um grunge, enquanto os olhos passeiam ao longo dela.
Motociclista praça velho e fã declarado do modelo, Luiz Fernando foi buscar esta moto no Rio de Janeiro e mesmo estando em bom estado de conservação, já sabia qual seria o seu destino a partir de então: encostá-la para um profundo trabalho de restauração, que durou quase um ano e consumiu algo em torno dos R$ 20 mil, segundo o próprio.

Detalhista, Luiz Fernando não deixou passar um detalhe sequer: a moto foi completamente desmontada e tudo que tinha para fazer – e até aquilo que não precisava – foi feito. Dos cerca de 200 parafusos que foram substituídos, ao trabalho de revisão das suspensões e do sistema de freios, mudança de posição do retificador de voltagem, troca do chicote, tudo foi trocado. “No motor, a única coisa que foi trocada foram as juntas, pois ele estava zerado. Além disso, todos os fluidos foram substituídos, assim como os cabos e flexíveis”, acrescenta Moura, tudo para deixá-la como se tivesse acabado de sair da fábrica.
Lado a Lado
Tirando o nome e o legado, não há nada que aproxime as duas motocicletas, a não ser o fato de que tratam-se de modelos big trail. Visual, mecânica ou ciclisticamente, são motocicletas tão díspares que é difícil conceber a ligação que possuem.

Vamos começar pelo motor?
A versão 1995 usava um bicilíndrico em “V”, de 742 cm3, arrefecido a líquido e alimentado por dois carburadores de 38 mm de venturi, que entregava 62,8 cv a 7.500 rpm e torque de 6,4 kgf.m a 6.000 rpm, enquanto que o câmbio era de 5 velocidades. A versão 2019 empregada neste comparativo (que já é a segunda geração da motocicleta), também apresenta motor bicilíndrico, mas este em linha e com 999,1 cm3. Com intervalo de centelhamento de 270º, arrefecimento a líquido e alimentado por injeção eletrônica, gera 94 cv nas mesmas 7.500 rpm, enquanto que o torque é de 9,7 kgf.m também a 6.000 rpm. O câmbio passou a ter seis velocidades.
Mas se não bastasse o punch a mais na capacidade cúbica para promover maior performance, a versão contemporânea traz ainda um arsenal eletrônico que faz tudo funcionar de maneira mais eficiente e amigável. Nesta segunda versão a motocicleta ganhou acelerador eletrônico ride-by-wire, que possibilitou a adoção do controle de tração com nada menos que sete diferentes níveis de intervenção, além de também poder ser desligado. Outro mimo tecnológico presente na versão nova e que nem em sonho passou pela cabeça dos engenheiros de antigamente são os Modos de Pilotagem, que na 2019 somam três configurados de fábrica (Tour, Urban, Gravel), além do modo User, onde o piloto pode ajustar a seu gosto o nível de potência, o nível de freio-motor e o controle de tração. (Ajustar nível de intervenção do freio-motor? Jesus, onde fomos parar!?).

Vamos para os freios?
Nossa amiga longeva conta com dois discos de 276 mm, mordidos por pinças de duplo pistão na dianteira, enquanto que atrás há um disco simples de 256 mm, acionado por pinça de pistão único. Já a nova CRF 1000L AT apresenta um robusto conjunto dianteiro, onde o destaque inicial são as pinças de fixação radial, que trabalham com dois discos de 310 mm em formato margarida; atrás o disco também margarida permanece com os mesmos 256 mm e pinça de pistão único (quem disse que não há similaridades?) Acontece que a nova versão traz um tal de ABS, que pode ser desconectado atrás, permanecendo o antibloqueio na roda dianteira. Vale ressaltar que este sistema é avançado o suficiente para funcionar com maestria na terra. Esquece aquele lance de o manete ficar duro e a moto não parar, que acontecia nos primórdios desta tecnologia.
E já que estamos falando em eletrônica, destaque também para o painel em LCD, que fixado na vertical, traz computador de bordo, o qual é acessado por dois conjuntos de botões nos punhos. É tanto recurso e possibilidades que você precisa de algum tempo com a moto para se familiarizar com todas elas, algo inimaginável para uma moto dos saudosos e bons Anos 90. Mas vale destacar o painel digital superior que a versão 1995 trazia, inclusive, com velocímetro digital trabalhando em conjunto com o analógico.
E quase me esqueço da iluminação em LED, tecnologia que só começou a chegar às motocicletas no início da última década e que melhora tanto a potência dos faróis, que o Luiz Fernando se encarregou de colocar um par de auxiliares em sua moto para ajudar o trabalho dos originais. É a única coisa que destoa da originalidade absoluta da motocicleta.

Embora os quadros das motocicletas sejam fabricados em aço, são totalmente diferentes em todos os seus aspectos de fabricação, provocando alterações na rigidez torsional, longitudinal e, claro, na posição de fixação do motor e de pilotagem. Enquanto na versão 1995 você fica um pouco mais distante do guidão (muito em razão do amplo tanque de 23 litros – na versão atual este tem capacidade para 18,8 litros) e com as pernas mais dobradas, na versão 2019/2020 você está com os braços mais próximos do guidão e estes, posicionados acima desta peça, enquanto que as pernas ficam menos arqueadas, o que contribui para ampliar o conforto e o ataque à curvas, assim como a pilotagem no off-road.
As suspensões na AfricaTwin 1995 apresentam bengalas convencionais de 43 mm na dianteira, que oferecem curso de 220 mm, enquanto que atrás há um monoamortecedor associado ao sistema Pro-Link, trabalhando com uma balança de alumínio. Sua altura em relação ao solo é de 215 mm.
Na atual versão, a AfricaTwin conta com garfos invertidos de 45 mm de diâmetro, com regulagens de compressão e retorno, oferecendo curso de 230 mm, enquanto que atrás o monoamortecedor oferece 220 mm, trabalhando também com balança de alumínio, mas esta fabricada em sistema de extrusão, que elimina soldas, o que aumenta sua resistência e reduz seu peso. Sua altura em relação ao solo é de 251 mm. (*)

Antigamente, as fábricas não disponibilizavam assentos com possibilidade de regulagem de altura, o que podia dificultar a vida dos mais baixinhos e até afastá-los deste tipo de moto. Na AfricaTwin 1995 a altura em relação ao solo é de 860 mm, bem parecido com o da atual, que conta com duas possibilidades: 850 mm ou 870 mm.
E por fim, vamos falar de peso? Mesmo sendo uma moto com motor maior e com muita eletrônica embarcada, a nova AfricaTwin pesa 216 kg em ordem de marcha, enquanto que a versão 1995 pesa 2 kg a mais, também com todos os fluidos.
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(*) Atualmente a AfricaTwin possui a versão True Adventure, cujas suspensões apresentam maior curso que a versão standard (que foi a avaliada): são 252 mm na frente e 240 mm atrás que faz com que a moto atinja os 271 mm.
