A bordo de uma Honda NC 750X, o aventureiro Fábio Amorim Soares explorou lugares que, no passado, foram percorridos pelos monges guerreiros

 TEXTO E FOTOS: FÁBIO AMORIM SOARES

Quando fui morar em Portugal, logo na primeira semana, comprei uma Honda NC 750X, uma moto excelente. Tinha dado só algumas voltas com uma dessas no Guarujá, mas, aqui, percebi bem suas qualidades. Potência na medida certa para viagens e para a cidade. Muito econômica, chegando a fazer 30 km/l. O porta-capacetes, onde normalmente fica o tanque, foi uma sacada genial da fábrica. É confortável e, principalmente, confiável. Nos dois primeiros meses, rodei 10.000 km com ela sem preocupações, só abastecendo, lubrificando a corrente e calibrando os pneus. Uma das viagens que fiz ao longo desses 10.000 km me marcou.

Sou muito curioso quanto a tudo o que diz respeito aos Cavaleiros Templários. Também li alguns livros sobre eles para ficar por dentro de sua história. Moro em Coimbra e os templários tiveram uma influência decisiva para a fundação de Portugal. Não muito longe, fica na cidade de Tomar, que foi a sede templária do recém-criado reino português. Ainda no rastro dos monges guerreiros, também estive ao sul da Espanha, na Comunidade Valenciana, mais exatamente em Peñiscola (cidade mediterrânea onde foi erguido o último castelo templário, no ano de 1307, antes da ordem ser extinta).

Depois de conhecer diversos territórios templários em Portugal e Espanha, resolvi visitar regiões diferentes. Escolhi uma cadeia de montanhas localizada no Principado das Astúrias, chamada “Picos de Europa”. Sabia apenas que a vista lá era bonita e que, no cume de uma das montanhas, existiam dois lagos.

RUMO ÀS MONTANHAS

Em outubro, o clima daqui começa a ficar chuvoso e enevoado. Achei uma janela de tempo muito boa, que duraria quatro dias, no máximo, e começava no dia seguinte. Acordei cedo e toquei para a primeira parada: Salamanca. A menor distância entre dois pontos é uma reta, mas, já que eu não ia para uma aula de matemática, ignorei esta regra. Fiz um caminho pela Serra do Açor, de novo por uma aldeia chamada Piódão – digo “de novo” porque, no ano passado, estive por lá, mas achei o caminho tão diferente que voltei. Serra da Estrela até chegar, por outras montanhas, à fronteira da Espanha. Esses lugares são lindos: estradas pequenas, sinuosas e vistas belas por todos os lados.

Uma das vantagens de não rodar por grandes rodovias é que as fronteiras são sempre interessantes. Cada uma tem uma “cara”. Já atravessei para a Espanha por barragem, fronteira seca etc. Pelas auto-estradas seria proibido parar para tirar fotos, além do fato de que são todas iguais. Alguns quilômetros depois de sair da Serra da Estrela, cheguei próximo à fronteira. Aldeias características daquela região fazem parte do trajeto. Do alto da montanha, avista-se o Rio D’Ouro e, ao lado, um afluente que divide os dois países.

Parei em um mirante e apreciei a paisagem por vários minutos. Pouco mais à frente, me deparei com outro local bonito, mas com uma surpresa: uma bela imagem da Nossa Senhora dos Caminhos. “Nossa Senhora, iluminai os nossos”, pedi. Descendo o que resta da montanha, uma ponte moderna faz a ligação entre as duas nações. À esquerda, o D´Ouro, e à frente, terras de Isabel de Castilla. Rumo a Salamanca!

VIELAS MEDIEVAIS

Após alguns quilômetros de estradas ainda sinuosas, o trajeto começa a ficar retilíneo. As curvas vão diminuindo e longas retas tomam conta do percurso.  A paisagem também muda. Depois dos verdes montes de Portugal, começa um visual mais árido. Vegetação rasteira e amarelada, em razão da pouca quantidade de chuva no verão. Em princípio, pode parecer não tão bonito, mas quando eu parava a moto e observava o trânsito quase inexistente, o silêncio, o céu azul, a pista longa e reta a perder de vista, percebia um cenário de pintura. A cada dez ou quinze quilômetros a estrada cortava pequenas cidades, sempre muito organizadas e limpas. Diversos estabelecimentos vendem “embutidos ibéricos”. Lomo, Jamón Serrano etc. São tantas as coisas gostosas que a vontade é levar de tudo um pouco – mas, sem malas laterais (só com “top case)”, o espaço fica restrito. Comprei algumas variedades.

Apesar de Coimbra não ser distante de Salamanca (cerca de 350 km), o deslocamento leva aproximadamente cinco horas, sem contar as paradas para fotos. E foram várias! Mesmo faltando quilômetros para Salamanca, sua Catedral se destaca na paisagem. Imponente, como se estivesse de prontidão para evitar qualquer mal. Cheguei ao meu primeiro destino por volta das 16h. O que dizer de Salamanca? Ela fala por si! É uma cidade universitária com prédios que mais parecem esculpidos do que construídos. Catedral, Plaza Mayor, Convento San Esteban, Universidad Pontificia (com suas torres fantásticas), Iglesia de San Marcos “La Redonda”, Ponte Romana e Puerta Zamora. Também por lá passaram os cavaleiros templários.

Jantei na Plaza Mayor, bebi um Rioja e saí caminhando. Quando se anda a pé pelo centro histórico, cada esquina é uma surpresa. A noite era estrelada e a lua estava absurdamente cheia, iluminando as vielas medievais quase vazias. Parecia algo irreal! Após tirar muitas fotos, fui descansar. No dia seguinte, seriam mais cinco ou seis horas de estrada.

SANTUÁRIO

Logo cedo, com a luz da manhã ainda preguiçosa e sob um frio de 8°C, saí do hotel em direção às montanhas. Nos primeiros quilômetros, a estrada se mantém com as mesmas características. Uma hora depois, cruzei novamente com o Rio D’Ouro (ou “Duero”). São interessantes as várias faces que um rio adquire ao longo de seu percurso. Aquele rio largo, que corta grandes distâncias em meio a um vale, dá lugar a um D’Ouro bem mais estreito em uma região relativamente plana. Depois de duas horas de viagem, parei em um café e perguntei à simpática proprietária que cidade era aquela. Ela me corrigiu: “Pueblo, es um pueblo”.  Pouco mais adiante, a paisagem começou a mudar.

A vegetação amarelada passou a ficar mais colorida. Curvas, aclives e declives começaram a surgir com mais frequência. Os “pueblos” e “villas” ficaram mais espaçados. Outra descoberta interessante: eu estava em plena “Ruta Peregrinación Camino de Santiago”. Não tinha a menor ideia que fosse passar por uma parte dela. Castelos à beira da estrada, locais da história medieval espanhola e mais territórios templários importantes (como Zamora) também fizeram parte do trajeto. Faltando cerca de 110 km para chegar ao destino, o caminho se transformou – dessa vez, de forma radical.

A subida começou, com a pista sempre acompanhando o rio (ora à esquerda, ora à direita). As montanhas enormes foram ficando menos distantes. Ali, ovelhas e cavalos anões frequentemente surgem após as curvas. A vegetação, com muitas árvores e totalmente verde, domina o cenário. A pista estreita e muito sinuosa é ladeada por montanhas de um lado e por um precipício do outro. Pilotei em um ritmo bastante lento. Não dá para não olhar atentamente todos os detalhes. Em diversas ocasiões, parei para fotografar a paisagem.

A elevação diminuiu de 1.100 metros para cerca de 400 metros e, em certo momento, fui engolido pelas montanhas. A placa indicava: “desfiladeiro”. É como se fosse a “Terra de Gigantes”! Eu, minúsculo, cercado por aquelas gigantescas paredes de rocha nos dois lados. A pista não tinha mais de quatro metros de largura. A sinalização alertava para o risco de queda de rochas. Túneis rústicos, redes metálicas de proteção contra deslizamentos. O sol já não iluminava bem, parecia o cair da noite. Só os cumes mais altos alcançavam os raios solares. Gradualmente, a paisagem se abriu. A luz solar voltou a incidir plenamente sobre a estrada.

Ainda extasiado com o que vira alguns minutos antes, cheguei ao “pueblo” onde passaria a noite, por volta das 18h: Covadonga! Um nome estranho, que significa “Caverna da Senhora”. Um santuário incrustado em um lindo vale, com sua basílica do século XIX, uma gruta (“La Santa Cueva”) escavada na rocha acima de uma cachoeira (a qual abriga, há mais de 1300 anos, a imagem de Nossa Senhora de Covadonga) e onde estão sepultados dois reis e uma rainha. O mais importante deles é D. Pelayo, morto e ali enterrado no século VIII (737 d.C.). Ele foi o grande responsável pelo início da reconquista da Península Ibérica dominada pelos Mouros, que foram totalmente expulsos somente 700 anos depois, em 1492, pela Rainha Católica Isabel de Castilla. Reconheço que, antes de chegar, não tinha noção de que aquele pequeno lugar era tão importante para a história das Astúrias e da Espanha.

QUANDO AS MONTANHAS OLHAM PARA O MAR

Dormi no hotel local, que ali está há 105 anos. Na manhã seguinte, tomei o café e logo fui conhecer os Lagos de Covadonga, a principal atração do Parque Nacional Picos de Europa (o primeiro parque nacional da Espanha, criado em 1918). Acima da névoa, que cobria boa parte das montanhas, o céu estava límpido e a temperatura era de 5°C. Conforme eu subia, o Astro-Rei começou a ser visto. “Una carretera serpenteante”, com inclinação de 16° e árvores cobrindo parte da pista, era o cenário do dia. À medida que eu avançava pelos 12 km montanha acima, as árvores davam lugar a rochas e a uma vegetação rasteira. Paisagens dignas de cartões postais! Cabras montesas soltas pelas escarpas são comuns por ali.

Quando eu estava a 1.070 metros de altitude, surgiu, após uma curva, o Lago de Enol. A água refletia o céu azul e os picos das montanhas que o rodeavam. É impossível não ficar de boca aberta. Espetacular! Um pouco mais adiante, cheguei ao topo. Em um pasto incrivelmente verde, pastavam ovelhas e bovinos. O grande lago glacial, parcialmente cercado por formações rochosas, dominava a paisagem. De longe, avistei pessoas quase imperceptíveis à beira da água, o que me deu uma noção de seu tamanho. É o Lago Encima! Fui para a margem esquerda, subi nas rochas e fiquei admirando aquela paisagem incomum. O silêncio era quebrado apenas pelo badalar dos sinos presos aos pescoços dos bois e ovelhas.

Em seguida, fui ao “mirador”, o ponto mais alto daquela montanha, onde avistei, ao norte, uma área plana e azul. Fiquei intrigado: o que seria aquilo? Céu ou mar? Chequei no “maps” minha posição. Sim: era o Golfo de Biscaia, que banha o oeste da França e o norte da Espanha. Aquela cena me marcou. As montanhas imponentes da Cordilheira Cantábrica pareciam observar atentamente, como sentinelas, a beleza do mar azul. Após admirar por quase três horas aquele cenário, era hora de começar a volta para casa. Desci as montanhas lentamente, guardando tudo na memória. Voltei pelo mesmo desfiladeiro rumo à Segóvia.

Cheguei no meio da tarde. Já havia estado lá dois meses antes, mas nunca é demais rever um lugar lindo e com uma história tão rica – um local onde foi coroada a rainha que ordenou a expedição que acabou por descobrir a América. Andei pelas ruas dentro das muralhas, comi “tapas” deliciosas (petiscos variados típicos da Espanha) e bebi algumas “copas” de Rioja. Na manhã seguinte acordei cedo e peguei o caminho de casa, passando por Ávila. Suas muralhas são a única construção militar cristã da Europa que se conserva tal e qual foi construída, no final do século XI.  Fugi da estrada convencional e peguei um “atalho” que seguia em direção a uma montanha. Subi e, aos 1.400 metros, uma entrada à direita levava mais ao cume. Entrei e a pista asfaltada não tinha mais que dois metros de largura. Era uma estação eólica. O visual era impressionante. Agora, era hora de descer!

É curiosa a diferença de preço do combustível. Em Portugal, gira em torno de 1,60€, e na Espanha, de 1,30€. Como rodei só por vias secundárias, não passei por nenhuma portagem (ou pedágio). Nas auto-estradas portuguesas existem pedágios eletrônicos, como se fossem os nossos radares de velocidade, mas só cobram o pedágio. Nas espanholas, nunca vi nenhum desses. O sol de outono nessa região fica sempre nos olhos, dependendo da direção tomada. Eu rodava no sentido oeste e já estava acabando a tarde. O sol castigava meus olhos, mesmo com óculos escuros. Mesmo assim, foi um privilégio conhecer lugares tão espetaculares.

Toda viagem é a melhor até vir a próxima – mas esta, sem dúvida, foi marcante: caminhos inesquecíveis, gastronomia, vinhos, paisagens estonteantes, surpresas inesperadas, enfim… Os ingredientes que fazem de uma viagem, “a viagem”.  Bora lá, de novo?

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