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Após deixar a França em plena pandemia, Ricardo Lugris percorre 1.650 km em 24 horas a bordo de sua sua GSA 1200 para chegar à Noruega, este país de clima tão imprevisível, paisagens singulares e estradas magníficas.

A impressionante vista desde o monte Dalsnibba, do alto de seus 1500 metros debruçados sobre o fiorde de Geiranger, talvez o mais bonito entre tantos outros na fotogênica Noruega, traz uma satisfação imensa ao motociclista como se este fosse o verdadeiro prêmio por sua persistência e tenacidade.

É verdade que viajar de motocicleta em tempos de Covid não é uma tarefa das mais fáceis em se tratando de Europa, ou talvez em lugar algum. O ressurgimento de novos casos neste verão, provocou novos fechamentos de fronteiras por parte de alguns países que passaram a exigir quarentena para viajantes provenientes de outros lugares na Europa, agora considerados como “zonas vermelhas”.

Após meses lidando com um novo tipo de rotina e confinamento em função dessa indesejável pandemia, passei a considerar seriamente uma nova viagem na primeira oportunidade. Minha natureza inquieta o exigia.

Analisando o mapa do Velho Continente, que conheço de muitas viagens, não restava muita opção para poder ir sem ter que me submeter às desagradáveis e limitadoras regras higiênicas, ligadas a essa movimentação balizada pelo distanciamento social. Escolhi a Noruega, um país que conheço bem e que oferece para o motociclista paisagens extraordinárias em um misto de selvagem e civilizado. Poder percorrer este país nórdico em toda sua extensão, até o paralelo 71 Norte, onde se encontra o mítico Cabo Norte, é sempre um desafio, nem tanto por suas estradas, que apesar de generosas em suas curvas e paisagens, são bem pavimentadas e seguras. O desafio reside, usualmente, nos caprichos do clima nestas latitudes que se aproximam muito do polo norte e são literalmente “regadas” pelo inconstante humor do Mar Ártico.

Deixei minha casa em Chantilly, na França, com a intenção de fazer um primeiro pernoite na Alemanha após 700 km de entediantes autoestradas.

Uma vez no hotel em Bremen, recebo a notícia pelo site do governo norueguês que este pretendia limitar a entrada de viajantes provenientes de vários países europeus, entre eles a França. A nova regulamentação, em forma de lei, entraria em vigor no dia seguinte, à meia noite.

A única possibilidade de prosseguir com minha planejada viagem à Terra dos Vikings seria retomar a estrada para chegar ao porto de Hirthsals, na Dinamarca, até as 11h da manhã do dia seguinte.

Assim, conduzi minha moto por exatos 1.650 km em 24 horas, com apenas três horas de um sono febril onde apenas pude descansar para poder retomar algo de lucidez em meus sentidos e evitar riscos na distância que faltava.

Hoje, passados alguns dias dessa noite interminável, encontro-me no alto deste miradouro com a fabulosa paisagem de montanha em torno do fiorde Geiranger e celebro minha perseverança em não desistir do que almejei para minhas férias nas últimas semanas.

Ao descer de Dalsnibba, passando por entre montanhas ainda nevadas apesar de estarmos no alto do verão, sei que vou poder neste mesmo dia, percorrer a extraordinária estrada do Trollstigen e suas impossíveis curvas e, logo em seguida, a “Ocean Atlantic Way”, construída entre várias ilhas, ambas rotas classificadas como das mais belas estradas no mundo.

Isso tudo, a menos de 300 km de distância, em um dia que promete ser memorável, mesmo que tenhamos feito esse mesmo trajeto em oportunidades anteriores.

Hoje, conto com o apoio do astro-rei que se faz presente em um brilhante dia sem uma brisa. Entre montanhas, a única coisa que perturba o silêncio é o ronronar de “gata-no-cio” de minha BMW GSA 1200, parceira com mais de 140.000 km rodados em mais de 50 países nos últimos seis anos.

Desde que mudei para a França em 1996, viajar de motocicleta pelo mundo tem sido minha rotina, enormemente apoiada por minha esposa, Graça que me acompanha quando encontra o roteiro interessante e, que, generosamente, me recomenda ir só quando o itinerário lhe parece mais difícil ou menos confortável.

A Noruega oferece vários roteiros possíveis para todos os gostos. Neste ano, em função das restrições que já mencionei, estão ausentes os europeus e presentes os motociclistas da terra. Assim, há muito menos gente para disputar as estradas e os lugares notáveis que fazem o enorme prazer de percorrer paisagens inesquecíveis, totalmente alheias, diferentes e misteriosas para um brasileiro.

Assim, meu fascínio de vir do Paralelo 30-Sul, Porto Alegre, e poder apreciar uma espécie de antípode de minha terra, em Hammerfest, a cidade mais ao norte no mundo, ou, se for o caso, o arisco Cabo Norte, cuja instabilidade climática já surpreendeu a muitos motociclistas que chegam ali com sol e temperaturas amenas e, no espaço de um par de horas, o termômetro cai de 15 graus e desce uma neblina que você não consegue ver nem os punhos de sua moto. Tenha consigo uma bússola e tome a proa sul para retornar…

A Noruega pode surpreender muito no que diz respeito ao clima e você pode fazer face, como foi meu caso nesta viagem em que me encontro agora, a vários dias de forte instabilidade climática, com ventos violentos, cujas rajadas podem chegar a quase 100 km/h, muita chuva, que em função do vento será forçosamente horizontal e finalmente,  temperaturas que, em pleno verão se equivalem as temperaturas mais baixas no Brasil no inverno.

Se tiver a oportunidade de vir para estas latitudes, venha preparado com equipamento pessoal adequado. Assim como em outras regiões remotas do planeta, você não pode se encontrar desprevenido, mesmo que este seja este um dos países mais civilizados do planeta, pois a hipotermia é igual para todos, em qualquer lugar do mundo.

De qualquer forma, poder percorrer estradas e regiões como a RV 17, ao norte de Trondheim, a bela terceira cidade da Noruega, essa estradinha que, em seus 500 km serpenteia entre fiordes e ilhas, obrigando o viajante a embarcar sua moto em seis diferentes ferrys. Nada é comparável à pausa que o ferry oferece ao motociclista onde ele, por alguns minutos, muda completamente o ritmo de sua viagem e cruza de um lado a outro de istmos e ilhas no plácido ritmo de um navio.

Esperas nos ferrys também favorecem a socialização entre motociclistas e permitem a troca de experiências e de sugestões. Em algumas oportunidades, você pode percorrer algumas centenas de quilômetros com desconhecidos que, à medida em que o tempo passa e as esperas pelos barcos acontecem, deixam gradualmente de ser desconhecidos para se tornarem, amigos.

Nada é comparável, para alguém do hemisfério sul como nós, à experiencia do “Sol da Meia Noite”. Entre 15 de Junho e 15 de Julho, no espaço conhecido como Círculo Polar Ártico, a noite simplesmente não existe já que o sol não se põe.  

Lembre-se de trazer consigo uma boa garrafa de vinho, abra-a, sente-se com sua (seu) parceira(o) assista o sol passear-se no horizonte sem jamais se pôr e celebre a vida, a liberdade e a existência de lugares como estes que te permitirão viver experiências singulares, simplesmente pelo fato que você se permitiu sair de casa, com pandemia, ou não.

Ricardo Lugris, 62 anos, é motociclista e escritor por vocação e executivo de aviação por necessidade. Residindo na Europa há 24 anos, percorreu com sua GSA mais de uma centena de países. É autor do livro “Tempo em Equilíbrio, de Paris a Singapura. Neste momento tem um segundo livro em fase de revisão.