Após descobrir novas paragens no Alasca, motociclista retorna pelo continente americano rumo ao Ushuaia (Argentina) e depois ao Brasil

TEXTO E FOTOS: CARLOS HENRIQUE FERREIRA

As paisagens ao longo da estrada que segue para Anchorage já valem estar de moto por ali. Passei pelo parque Denali, que é bem bonito, mas muito explorado turisticamente. Como choveu muito nesse dia, minhas luvas, que até então eram à prova d’água, mostraram que já não eram mais. Procurei luvas em Anchorage, em uma loja de motos multimarcas, e o gerente, quando viu a placa do Brasil, veio conversar. Chamava-se David Brendon, e tinha morado seis meses em Jau, interior de São Paulo, jogando futebol na década de 80, tentou inclusive jogar na seleção americana. Ficamos um bom tempo conversando e, como as luvas nessa loja eram muito caras, ele mesmo me indicou um lugar especializado em artigos de esportes na neve onde eu poderia encontrá-las. Continuei em direção ao sul, para a cidade de Seward, e no caminho fiz um desvio de alguns poucos quilômetros para conhecer o porto de Whittier.

Fiquei sabendo da existência desse lugar pelo pessoal que conheci na loja de artigos de inverno. Foi realmente sensacional. Existe um túnel, de apenas uma via, para os trens da Alaska Railroad, que foi construído durante a Segunda Grande Guerra, com aproximadamente 4 km de extensão. Através desse túnel, além de trens, passam carros, caminhões e, obviamente, motos, por um sistema de mão única em determinados horários que logicamente não coincidam com os trens. Tudo muito organizado para se evitar os acidentes. No porto de Whittier, passei o dia e depois segui para Seward, onde fiquei por dois dias.

Depois segui a um lugarejo chamado McCarthy. Foi extremamente interessante também conhecer a incrível mina de cobre Kennicott, abandonada, e que está passando por uma detalhada restauração para fins turísticos e preservação da história, com todo o maquinário ainda em bom estado. A cidade é muito pequena, com cerca de duzentas pessoas vivendo nos meses de verão. Nos demais meses a população não passa de 60 moradores.

Dias depois, fui para Valdez, onde comi um salmão de verdade e logo em seguida Chistochina, onde por acaso conheci a hospedagem e o pessoal mais bacanas de toda a viagem. Fiquei em uma barraca (do tipo campanha do exército) com lareira e cama tamanho king, de alto luxo. O nome da hospedagem é Red Eagle Lodge, onde me receberam como se eu fosse da família. Richard e Judy são os donos desse lugar. Acabei ficando três dias.

Deixei o Red Eagle Lodge com a certeza de que conhecer pessoas e suas histórias de vida é tão interessante quanto conhecer belas paisagens.

Deixando o Alasca

Dawson City, no norte do Canadá, é uma cidade da época da “Corrida do ouro”, um lugar que parece ter parado no tempo, ou melhor, a arquitetura da cidade não sofreu influência com o passar dos anos, “pipocando neve pra tudo que é lado”. Todas as vezes que encontrei alguém de moto já voltando no caminho de Dawson, me diziam para acampar no Dawson City River Hostel, que fica atravessando o Rio Yukon por balsa. O lugar é sensacional, não tem eletricidade e é necessário esquentar com lenha a água para o banho. Ao norte de Dawson, novamente cruzei a linha imaginária do Círculo Polar Ártico por uma estrada que acaba na cidade de Inuvik, um caminho muito mais bonito do que aquele para Prudhoe Bay, com a vantagem de não haver caminhões e pouquíssimos carros circulando.

Havia nevado e chovido bastante no dia anterior, por isso a temperatura estava bem baixa e com bastante lama. São 400 km de cascalho até o Circulo Polar Ártico, logo após um lugar chamado Eagle Plains, por uma belíssima estrada. Assim como em Prudhoe Bay, tive de levar pela segunda vez nessa viagem gasolina extra.

Em seguida, fui para Whitehorse e, após sair dali, muitos pelo caminho me falaram para fazer um desvio após passar por Dease Lake e dormir numa cidade chamada Stewart, que também faz fronteira com o Alasca. Chegando ao hotel encontrei um mexicano de nome Javier, que estava viajando de moto com a filha desde a cidade mexicana de Guadalajara e também estava voltando do Alasca. Viajei com Javier e sua filha por dois dias até Vancouver embaixo de água. Ainda em Vancouver troquei mais uma vez o pneu traseiro e a relação da moto. Novamente encontrei um pessoal muito prestativo em uma oficina, que inclusive me emprestou algumas ferramentas.

BELA VICTORIA

Peguei um ferry para conhecer a Vancouver Island e sua espetacular capital, Victoria, e desde ali até o última cidade ao norte da Ilha chamada Port Hardy, são uns 500 km de extensão. Depois se pode ir um pouco mais longe para o lado oeste, por estrada de terra até San Josef Bay, onde ficam umas praias bem legais e desertas por estrada de terra através de uma floresta muito preservada. No meio da ilha, também para o lado oeste, fica a cidade de Tofino, famosa no Canadá por boas ondas para surfar, onde fiquei uns dias.

Depois fui para Seattle e lá fiquei por dois dias visitando belos parques e museus. Logo que sai dali, segui em direção ao litoral na cidade de Westport, que também fica no estado de Washington. Acampar naquelas praias desertas foi um espetáculo, algumas noites bem claras, outras com neblina, mas o frio de madrugada não dava trégua.

CALIFÓRNIA

Sempre descendo pelo litoral, finalmente cheguei à Califórnia, e a temperatura voltou a subir. Fui a uma cidade chamada Mariposa, ao lado do famoso parque Yosemite, em um evento da HU (Horizons Unlimited) para pessoas que gostam de viajar de moto, encontrei novamente o alemão Alexander Conrad, que havia conhecido em Fairbanks, no Alasca, que também viajava sem GPS. Após sair de Yosemite, voltei novamente ao litoral a fim de “descer” pela rodovia CA1. Antes de chegar a Los Angeles fiquei uns dias em Santa Cruz, uma bela cidade com muitas casas de madeira em estilo vitoriano

MÉXICO

Quando deixei a Califórnia segui para o México por Tijuana. Como não havia ninguém para pegar meu formulário I94 de entrada nos Estados Unidos por terra, para que assim ficasse registrada minha saída, deixei a moto na Aduana do México e fiz uma longa caminhada pelo lado mexicano, para dar a volta na fronteira e conseguir deixá-lo na mão de algum agente da aduana americana. A funcionária que recebeu esse documento me disse que eu teria problemas quando voltasse aos EUA se simplesmente fosse embora sem registrar minha saída. Passei rapidamente por Tijuana e segui para Baixa Califórnia, que é aquela “tripa” de terra pertencente ao México e fica logo abaixo da Califórnia. Depois, descendo pelo litoral do Pacífico, dormi em uma cidade chamada San Quintin.

Até ali tinha ficado um pouco desapontado com a paisagem da estrada, pois imaginava que ela inteira margeava as praias. Saí dali bem cedo e logo a paisagem transformou-se em deserto com os maiores cactos que vi na vida. Passei um pouco de apuro pela primeira vez na viagem com relação à falta de gasolina, pois havia poucos postos para abastecer. Segui por um trecho na Baixa Califórnia, onde a estrada fica um pouco monótona, mas após alguns quilômetros se transforma em lindas praias com águas bem calmas, cristalinas, voltadas para o Golfo da Califórnia e lotadas de tubarões baleias. Dos muitos penhascos à beira da estrada é possível vê-los nadando calmamente. Ao final de três dias por aquele caminho, peguei um ferry que parte à noite de uma cidade chamada La Paz e atravessei para Mazatlán, onde coloquei o sexto pneu traseiro dessa viagem.

FURACÃO, CARTÉIS

Combinei de encontrar minha esposa Simone (que em mais cinco dias estaria embarcando de São Paulo para Cancun) e como estava um pouco adiantado, encontrei uma cidade chamada Vista Hermosa, onde ficaria de dois a três dias esperando a passagem do furacão Patrícia, que estava anunciado como o maior de toda a história e chegaria do Oceano Pacífico por aqueles dias.

Por sorte, quando esse furacão chegou ao continente ele virou uma tempestade tropical e não tive problema. Pude reparar que a polícia mexicana é bem equipada em relação ao armamento, mas nessa cidade, especificamente, pareciam soldados em uma guerra de tão armados. Eu não conseguia me sentir tranquilo ali em Vista Hermosa, até que um homem de um mercado local me explicou que por lá havia um pacto entre dois cartéis e, devido a esse pacto, segundo ele, nenhum dos dois lados entrava na cidade. Encontrei minha esposa, Simone, e ficamos mais de duas semanas rodando de moto nesses dois estados mexicanos (Yucatan e Quintana Roo), que possuem uma grande concentração de ruínas maias muito bem preservadas, belas praias e piscinas de formação natural de água cristalina.

MERGULHO EM BELIZE

No mesmo dia em que Simone voltou ao Brasil, eu já estava em Belize. Claro que Belize City e Georgetown (Guiana), não são cidades onde se pode andar tranquilamente, principalmente à noite, mas eu não tive problema. Cheguei à noite e debaixo de muita chuva em Belize City, e a hospedagem que havia reservado pela internet (as autoridades locais pedem o endereço de estadia na fronteira), não tinha um aspecto muito bom, parecia uma ruína. Belize é um lugar muito voltado para mergulho. Deixei a moto na hospedagem e, depois de quase uma hora de barco, cheguei a uma paradisíaca pequena ilha chamada Caye Caulker, com águas calmas e muito limpa, onde fiquei hospedado três dias esperando a data para mergulhar no “Blue Hole”, lugar com vida marinha ainda muito bem preservada. De Belize fui para Antigua, na Guatemala, pois como havia passado rapidamente pela América Central na ida, queria ficar um tempo maior por lá e conhecer a região.

A Guatemala tem vários vulcões e não queria desperdiçar a oportunidade de chegar próximo a um deles. Em Antígua, que aliás é belíssima, tive a informação de um vulcão em atividade, próximo à São Vicente de Pacaya, onde pude fazer uma caminhada perto da cratera, e ver o rio de lava já endurecida da última grande erupção, ocorrida em 2011.

NOVOS LUGARES

Como não passei por El Salvador na ida, não queria perder a oportunidade de surfar ali durante o meu retorno.  Minha entrada e saída nesse país foram muito tranquilas e rápidas. Após cruzar a fronteira fui para El Tunco, uma praia muito bonita, com boas opções para comer, dormir e boas ondas, bom lugar para ficar alguns dias.

Após deixar El Salvador, atravessei novamente Honduras e a bela e burocrática Nicarágua. Na fronteira desse país com a Costa Rica, já não bastasse toda burocracia, ainda havia milhares de cubanos tentando entrar na Nicarágua, com a intenção de chegar aos EUA, onde há uma lei que os beneficia caso entrem por terra naquele país. Eles estavam em situação desumana, há dias sem comer decentemente, amontoados em colchões velhos e úmidos.

Costa Rica e Panamá, são os países com os menores índices de violência da América Central, hospedei-me numa cidade da Costa Rica chamada Jacó, que assim como El Tunco, fica no Pacífico, bom lugar para o surf, onde também se pode facilmente alugar longboards.  De Jacó fui direto para a cidade do Panamá, novamente preocupado em como transportar a moto do Panamá à Colômbia.

Devido a não ter nenhum progresso com a questão de despachar a moto por mar, fui ao aeroporto na manhã seguinte, adiantar a documentação para enviar a moto no avião de carga e no outro dia, consegui despachar a moto, pegar um voo para Bogotá e no início da noite, daquele mesmo dia, já estava com a moto liberada na Colômbia.

DE VOLTA À AMÉRICA DO SUL

Alguns dias depois, quando estava rodando pela Panamericana em direção a Lima, no Peru, procurando um lugar para tomar um rico café da manhã peruano (sopa de carne ou frango com batatas), muito saboroso, vi uma Super Ténéée 1200 com placa do Brasil e nela estava André Carrazzone, de São José do Rio Preto (SP), motociclista acostumado a viajar de moto com a esposa pela América do Sul. Ficamos um bom tempo conversando, seguimos viagem juntos e, ao final do dia, nos despedimos, pois faríamos caminhos diferentes. Fui para Iquique, onde fiz uma revisão rápida na moto e na manhã seguinte fui em direção a Calama e San Pedro de Atacama.

Quando passei dessa vez por San Pedro de Atacama, me veio a ideia de “descer” até Ushuaia e completar a viagem de um extremo a outro da Panamericana em uma única viagem, mesmo sendo a quarta vez que iria para Ushuaia de moto, apontei o farol para o sul e continuei seguindo, já na Ruta 40, muito diferente de 1996, quando passei por lá pela primeira vez, pois agora (infelizmente) poucas partes não estão asfaltados, com destaque para o belo trecho pela 33 entre Payogasta e El Carril. Após andar um pouco por ali, desviei até encontrar a Ruta 3 em San Antonio Oeste. Passando por Realicó, levei uma picada de abelha no braço e após alguns quilômetros, outra no pescoço. O problema não era a dor, mas comecei a sentir dificuldade na respiração. Resolvi parar num posto médico público em Ataliva Roca, a médica me deu uma injeção e disse que provavelmente eu era alérgico.

Já melhor segui rumo a Rio Gallegos, onde, ao abastecer, escutei um barulho estranho no motor da moto. Achei melhor então desviar para Punta Arenas, pois, na minha opinião, lá haveria mais recurso que Ushuaia para fazer algo na moto. Chegando a Punta Arenas tarde e bastante frio, fui procurar um lugar para dormir e para minha sorte mais uma vez achei a minha segunda casa: o Residencial Santa Barbara, onde seus donos, um casal muito simpático e prestativo, Francisco e Ilda, me fizeram sentir em casa. Isso é muito bom quando você está com algum problema e sozinho, pois não parava de pensar em como iria solucionar aquele ruído se fosse realmente a biela. Indicaram-me um mecânico experiente chamado Maurício e este também achou que o problema da moto era biela. Preocupado, pois a peça teria que vir do Brasil, naquela mesma noite liguei para um amigo de Santos (SP), chamado Cacá, que tem um grande conhecimento da mecânica. Após gravar o barulho do motor e enviar para que ele escutasse, Cacá insistiu que o problema, muito provavelmente, não era na biela e sim a porca do virabrequim solta. Seria apenas retirar a tampa da lateral direita do motor, juntamente com a bomba d’água e reapertar. Assim, na segunda-feira quando abrimos a lateral do motor, com a mão mesmo pude comprovar que a dita porca estava solta e ficava batendo na arruela trava. Bastou apenas reapertar tudo e a moto estava perfeita novamente. Aliviado, aproveitei a boa infra estrutura de Punta Arenas para colocar o oitavo pneu traseiro e quarto dianteiro na moto e fui para Ushuaia e depois de quatro dias já estava novamente em Santos.

Fisicamente bastante desgastado, após 5 meses e 10 dias, 67.286 km, 3.527 litros de gasolina, 12 pneus, 4 trocas de relação, mas muito contente por ter dado tudo certo – apesar de toda a exposição a acidentes e o risco de viajar sozinho. Fui ao encontro do que é desconhecido, desliguei-me das preocupações (mesmo sabendo que os problemas estariam lá me esperando na volta), a certeza de conhecer lugares, culturas e novas pessoas foi realmente incrível e isso faz você valorizar ainda mais o lugar onde mora, as pessoas que o rodeiam e as muitas ou poucas coisas que você tem.

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