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Ao longo de 27 dias, este casal de Santa Catarina percorre 11.500 km descobrindo as belezas e os encantos do sul do nosso continente, mas também, enfrenta os desafios que elas cobram.

Texto e fotos: Michelle e Thiago Damo

Nos chamamos Michelle e Thiago Damo. Somos dois arquitetos que adoram sua profissão, mas que tem nas viagens de moto sua grande paixão.

O ano era 2017 e nós já tínhamos alguma experiência em viagens pelo Brasil e América do Sul. Naquele início de ano havia em nós um misto de satisfação pelas viagens realizadas, mas também a ambição de ir cada vez mais longe. Foi então que decidimos: havia chegado a hora de fazermos “a viagem”. Aquela que todo motociclista sonha em fazer: Ushuaia/Tierra del Fuego. O destino cobiçado na Patagônia Argentina, exigiria um planejamento diferente de tudo que já tínhamos feito. Seriam mais dias de estrada, em condições climáticas que nos desafiariam e para completar esta aventura, seria nossa primeira viagem longa sozinhos.

Muitos meses de preparativos e de ansiedade se passaram até que enfim amanheceu o dia de nossa partida. Era dia 17 de dezembro. Levantamos cedo, finalizamos as malas e pegamos a estrada. Nossa companheira nesta aventura foi a BMW R1200 GS Adventure 2016, que chamamos carinhosamente de “Querida”.

Conforme a viagem progredia, ainda no caminho de ida, sentíamos cada vez mais presente o poder da natureza. Era o famoso Vento Patagônico, que soprava do continente em direção ao oceano. Procurávamos sempre sair cedo para evitar ficar na estrada até tarde, que é o período em que os ventos se intensificam. Mesmo assim, foi um exercício físico e mental superar aqueles trechos onde o vento não dava descanso. 

Oito dias após nossa partida, estávamos nos aproximando do destino principal. A ansiedade era grande, pois foram muitos meses estudando o roteiro e vislumbrando a chegada no famoso portal da cidade. Foi então que, após uma curva, aquele local que mora no imaginário de todos nós, motociclistas, se descortinou em nossa frente. O Portal de Ushuaia estava diante de nós. Havíamos alcançado a cidade mais austral do planeta. Quanta emoção! 

Era hora de fazer uma pausa de dois dias na nossa viagem e descobrir o que Ushuaia tinha a oferecer. Entre as principais atrações estavam: o passeio de barco no Canal de Beagle para conhecer o famoso “Farol do fim do mundo”; e especialmente ir até o Parque Nacional Bahia Lapataia, na famosa placa que indica o término da Ruta 3. 

Um natal entre ondas, sustos e muito frio

A viagem estava perfeita, mas o dia mais tenso ainda estava por vir. Estávamos deixando Ushuaia com destino à Puerto Natales/Chile, cidade-base para o Parque Nacional Torres del Paine. Era dia 25 de dezembro, Natal, saímos cedo pois tínhamos muitos quilômetros a percorrer. Seriam quase 800 km de estrada, aduanas e uma travessia por balsa.  A temperatura estava congelante, literalmente.

Ao chegarmos ao Estreito de Magalhães, na Bahia Azul, assim como tínhamos feito no caminho de ida, precisávamos pegar a Balsa para atravessar essa faixa de oceano que interliga o pacífico ao atlântico. Ao avistar a balsa “ancorada” e com as portas abertas, me aproximei. No entanto, ainda não estava liberada para o embarque. Fui falar com o operador, que me explicou que o vento estava muito forte, e na parte mais profunda do estreito, o mar revolto deixava a travessia perigosa. Teríamos que aguardar. 

Após cerca de uma hora, autorizaram nosso embarque, mas nos alertaram para que não saíssemos de perto da moto, pois ela poderia tombar com o movimento da balsa. Pensei ser impossível, devido ao tamanho colossal daquela balsa que pode carregar dezenas de carretas simultaneamente.

Estava lá eu, Thiago, seguindo as instruções do operador, sem enxergar quase nada além do céu, devido aos enormes paredões de aço da balsa, quando senti que os movimentos laterais estavam cada vez maiores. Em certo momento comecei a avistar o oceano em ambas as direções, tamanha era a inclinação da embarcação. Haja força para segurar a moto. Quando achei que estava no controle da situação, a moto inclinou para a esquerda, se apoiou no descanso lateral e ficou com as duas rodas no ar. Se não fosse minha presença e esforço, certamente a moto teria tido uma queda feia.

Passado o susto e o trecho de maior correnteza a situação melhorou.  Fazia muito frio e o vento gelado tornava aquela travessia ainda mais demorada e difícil. Já podíamos sonhar com um café quente na lanchonete localizada na Punta Delgada. Mas quando chegamos lá, tivemos um choque de realidade: era feriado de Natal e no Chile eles levam muito a sério isso. Apenas serviços essenciais podem funcionar.

O jeito foi seguir viagem, acompanhados do frio e do vento que não davam trégua em nenhum momento. Foram longos quilômetros percorridos sem encontrar qualquer tipo de abrigo pelo caminho para descansar e nos aquecer. A única alternativa foi parar no acostamento, enfrentar o vento forte e o frio e recompor nossas energias com algumas barrinhas de cereais e água.

Foi um dia tenso e de muito frio, mas enfim chegamos a Puerto Natales. De lá teríamos dois dias de passeios com uma agência para conhecermos o Parque Nacional Torres del Paine. Talvez esse tenha sido o maior arrependimento desta viagem: Não ter ido com nossa própria moto neste parque fantástico.

Fizemos o trekking até a base das Torres, uma trilha complexa de 20 quilômetros (ida e volta) considerada de dificuldade média-alta, com subidas e descidas íngremes.

Eu, Thiago, que não sou nenhum atleta, já na subida senti uma lesão no joelho direito que exigiu muita superação da minha parte para chegar até o topo. Mas como todo esforço tem sua recompensa, a paisagem da base das torres é simplesmente espetacular. 

Cenários surreais

Depois de Puerto Natales, voltamos à Argentina para irmos até a simpática e charmosa cidade de El Calafate, onde visitamos o Glaciar Perito Moreno e navegamos pelo Lago Rico, observando de uma perspectiva diferente as impressionantes paredes da geleira. Também fizemos um passeio de barco até a Estancia Cristina e o Glaciar Upsala. El Calafate é outro destino imperdível com paisagens de tirar o fôlego.

De El Calafate fomos até El Chaltén, apenas 213 km de distância. A pequena cidade de El Chaltén é a mais nova da Argentina e já é muito famosa, especialmente por motociclistas e amantes de trekking. Por isso recebe viajantes dos quatro cantos do mundo, que vêm em busca do contato direto com a natureza e belas paisagens. A Ruta 23, que liga a famosa Ruta 40 até El Chaltén, é certamente uma das estradas mais belas que já rodamos. O Monte Fitz Roy ao fundo, rios azulados, geleiras. O cenário é surreal.

Como eu estava com aquela lesão no joelho, não pudemos percorrer as diversas trilhas que levam até a base do Fitz Roy. Mais um motivo para voltarmos para esta cidade. 

No dia que antecederia a nossa saída de El Chaltén, tivemos notícias de um casal de motociclistas, que haviam feito naquele dia o mesmo trajeto que faríamos, e sofreram demais com o vento tendo diversas quedas no rípio argentino. Pesquisamos a previsão de ventos para a região, e decidimos ficar um dia a mais na cidade, pois a previsão indicava melhoraria nos próximos dias.

Era chegada a nossa vez. Saímos com apreensão para o dia que nos esperava. Para nossa sorte o dia amanheceu lindo e sem vento. Fizemos o famoso trecho chamado de “los 73 malditos” sem maiores problemas. Este trecho é chamado assim, pois é um dos últimos trechos ainda não pavimentados da Ruta 40 na Patagônia. São 73 quilômetros de rípio que, dependendo da época do ano podem, ser bem difíceis de transpor. Se acrescentar o vento patagônico então, nem se fala.

Naquele dia fomos até a cidade de Perito Moreno, e no seguinte após muita chuva, chegamos em Bariloche. De lá fizemos a Ruta de los Siete Lagos. Um trecho belíssimo pela Ruta 40, em meio a lagos, montanhas, e cidades charmosas como Villa la Angostura e San Martin de los Andes. 

Retornar é preciso…

Era hora de rumar para casa. Faltavam ainda cerca de 3 mil quilômetros que devíamos cumprir em quatro dias. Mas este trecho não foi monótono. Tivemos que trocar o pneu traseiro na cidade de Neuquén; fizemos revisão na moto em Buenos Aires e finalmente chegamos na nossa casa, em Chapecó (SC). Foram ao todo 27 dias de viagem e 11.500 km rodados. Muitas histórias, muitas paisagens e muitos desafios. Certamente voltamos diferentes de quando saímos. Apesar de alguns momentos tensos, soubemos superar as adversidades e nos tornamos mais fortes e preparados para as próximas aventuras. Afinal, temos um mundo a conhecer!