Deserto do Atacama

Treze anos após sofrer grave acidente de moto, o gaúcho Mateus Erthal e sua companheira Michelle Erthal colocaram sua Yamaha Ténéré 250 na estrada e seguiram rumo ao Deserto do Atacama, no Chile, em busca de novos caminhos, desafios e belezas

Texto e Fotos: Mateus Erthal e Michele Erthal

Deserto do Atacama, Chile

Em 2003, aos 19 anos, Mateus Erthal sofreu um acidente a 100 metros de sua casa, após um motorista embriagado e sem CNH vir de encontro à moto que ele pilotava, na cidade gaúcha de Roca Sales. Levado para Porto Alegre, após 19 dias e várias cirurgias, Mateus teve a perna amputada. Durante o tempo de recuperação, ele sempre expressou seu desejo de voltar a pilotar, recebendo total apoio da família. Depois de colocada uma prótese e do período de adaptação, por sugestão de um amigo mecânico, foi instalado um pedal de marchas no lado direito da moto, logo acima do freio, passando um eixo de um lado para o outro, ligando-o ao pedal de marchas original. Estava tudo normal outra vez.

Em 2007, Mateus era participante ativo de um grupo de estradeiros que trocavam suas experiências na internet, o VMAS (Viagem de Moto América do Sul). Tempos mais tarde, integrantes desse grupo perceberam que Mateus era uma pessoa “especial”, e não pelas suas circunstâncias, mas sim pela força do seu espírito. Ele jamais se acomodou, buscando incessantemente realizar suas vontades e cumprir seus sonhos.

Uma das suas grandes preocupações é a missão de servir de exemplo a outras pessoas que tenham esse tipo de problemas a não abandonarem suas vidas, e que busquem com determinação curtir sua existência, mesmo que dentro de suas limitações.

Recentemente, a história de Mateus, junto ao relato de uma viagem realizada por ele, chegou à Redação de Moto Adventure. Leia abaixo, nas palavras do próprio Mateus, como foi essa aventura.

Caracoles
Caracoles

SONHO

“Passei muito tempo planejando a realização um sonho. Mas quando chegou a hora um nervosismo incontrolável fazia parecer que havia algo errado. Vencido esse temor, saímos, eu, minha companheira Michele e nossa Yamaha Ténéré 250, de Roca Sales (RS), rumo ao Deserto do Atacama, no Chile.

Entramos na Argentina por São Borja e, para conhecer mais esse país, saímos da Ruta 16, que seria o caminho mais rápido para o principal destino, San Pedro de Atacama, no Chile, e entramos na Ruta 89, onde passamos por povoados e cidadezinhas bastante pobres, com casebres baixos e sem degrau na porta, porcos e cabras soltos nas ruas e na beira da pista, o que exigia atenção redobrada.

No terceiro dia na estrada, ao lubrificar a corrente da moto, percebi um raio quebrado. Fiquei preocupado, afinal, estávamos com muita bagagem e passei a verificar os raios a cada parada. Mas, felizmente, foi um caso isolado. Passamos por Santiago del Estero e Termas do Rio Hondo e seguimos em frente, avistando no horizonte algumas montanhas, o que significava que estávamos mais perto da Cordilheira dos Andes.

Depois de tantas retas, em meio a planícies que pareciam não ter fim, foi prazeroso chegar a Tafí del Valle serpenteando entre morros com muito verde e um riacho que completava a beleza da estrada, além do Lago El Mollar, na entrada da cidade. A saída da região também foi bonita, com a estrada beirando penhascos, pedras e cactos ao lado do estreito asfalto.

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Ruta 40
Ruta 40

AVENTURA

Logo chegamos à famosa Ruta 40, maior rodovia da Argentina, que corta o país de norte a sul, paralelamente à Cordilheira dos Andes. Paramos nas Ruínas de Los Quilmes, aldeia indígena que mais resistiu à colonização espanhola. Depois seguimos até Cafayate e dali em diante teríamos 155 km sem asfalto até Cachi. Nesse trecho a velocidade teve de ser bem reduzida em alguns pontos, devido à areia solta e muitas “costeletas”, além de algumas curvas estreitas e sem visão, que exigiam cuidado. O peso da bagagem muda bastante a pilotagem, mas esse trecho pode ser percorrido com qualquer moto. E merece, afinal, é de uma beleza surpreendente por ser um local desértico, com alguns povoados remotos, e passa pela Quebrada de las Flechas, um acidente geográfico com formações rochosas pontiagudas com paredes de até 20 metros de altura. Cada curva é uma imagem diferente.

Nessa noite, em Cachi, ficamos com uma dúvida cruel. Tínhamos certa flexibilidade no roteiro, não saímos com ele totalmente definido (nunca é), e teríamos que decidir o que ver e o que deixar de ver. Descartamos Salta e Purmamarca e resolvemos ir a San Antonio de Los Cobres, cidade com 5.000 habitantes a 4.200 metros de altitude.

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Ainda restava decidir por onde ir: seguir na Ruta 40 e passar por Abra del Acay, uma passagem de montanha a 4.895 m de altitude, ou dar uma volta maior e passar pela Cuesta del Obispo, uma estrada em ziguezague vista quase na sua totalidade do topo a 3.340 m de altitude, e que chega a 1.270 m em apenas 20 km. Optamos pela segunda, cruzando antes o Parque Nacional Los Cardones, que são cactos enormes em uma área preservada. As diferentes rochas com cores variadas nas paredes das montanhas parecem pinturas vistas de longe, um cenário inesquecível.

Depois da Cuesta del Obispo pegamos a Ruta 51, que tem alguns trechos  pavimentados e outros em obras. Várias vezes passamos por leitos de rios secos e cruzamos a linha férrea. Essa mesma linha, que faz o passeio de trem de Salta até San Antonio, chamado de “Trem das Nuvens”, devido à altitude, também passa no Viaduto La Polvorilla, em San Antonio, obra monumental da engenharia, com estrutura metálica, que vimos de perto no dia seguinte.

Abra del Acay
Abra del Acay

ALTITUDE

Chegando a San Antonio se percebe a diferença de altitude. O simples esforço de tirar as bagagens da moto já é suficiente para tirar o fôlego. O vento também sopra forte, levando poeira das ruas para todos os lados. Passava um pouco das 17h, ainda teria algum tempo de sol e eu tinha muita vontade de ir até o Paso de Montanha Abra del Acay,  a aproximadamente 45 km dali. Abastecemos num típico posto a céu aberto, e o frentista recomendou que não fôssemos, pois escureceria e o frio chegaria bem rápido, afinal a mudança de altitude é brusca.

Com as balas de coca na boca fomos mesmo assim, de novo na Ruta 40, agora no sentido inverso. Costeletas e muita areia solta no começo, mas subimos razoavelmente rápido. Algumas vicunhas cruzavam a estrada, procurando se afastar de nós. Pequenos córregos, formados pelo degelo das montanhas, conforme subíamos, mais congelados estavam. Em alguns pontos havia gelo na beira da estrada.

Chegamos ao topo, gritei dentro do capacete. Quantas vezes antes eu tinha admirado as fotos desse lugar!  Mal conseguimos fotografar junto à placa que indicava os 4.895 metros, não era tão frio, mas o vento forte fazia com que fosse difícil até se manter de pé. A moto balançava enquanto apoiada no descanso lateral. Iniciamos a descida, enquanto o sol desaparecia atrás da cordilheira.

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Michele começou a sentir fortes dores de cabeça. Descansamos um pouco no hotel, ela tomou um comprimido para enxaqueca, mas piorou, com náuseas e vômito. Era o “mal de Puna” (altitude), muito comum a quem chega nessas regiões. Fiquei um pouco tenso nessa hora, afinal, pessoas desconhecidas, cidade com aparência de que não tem nada, impossível sair naquela hora para um lugar com menos altitude, muito frio e vento na rua!

Saí para ver se achava uma farmácia e um homem com quem conversei na frente do pequeno hotel me recomendou ir ao hospital da cidade. O dono do hotel foi muito prestativo e se ofereceu para nos levar de carro. Disse que é comum ele levar turistas que passam mal. No hospital, simples, como tudo por lá, fomos bem atendidos pela simpática enfermeira e pela doutora, esta que, de cara já vi que não era da região, pois era a única que não tinha aparência indígena. Ela disse que andava de moto também e que ainda iria fazer uma viagem como a nossa. Fiquei arrependido por não ter tirado fotos com elas. Nessas horas a gente não lembra. Um pouco de oxigênio, uma injeção e voltamos ao hotel. Mas foi a pior noite da viagem. Acordei várias vezes com o coração disparado e falta de ar. Sentava na cama e procurava me acalmar, mas é uma sensação muito ruim. Enfim amanheceu. A Michele estava melhor, mas bem fraca. Tomamos café, mas ela voltou a vomitar. Pensamos em ficar ali nesse dia, embora talvez fosse melhor ir para um lugar mais baixo.

Fora da estrada
Fora da estrada

SEMPRE EM FRENTE

Decidimos carregar as coisas na moto e ir até o Viaduto La Polvorilla, a 18 km dali, depois voltar, almoçar e então definir o que fazer. Teríamos mais estrada de chão pela frente. Pretendíamos chegar à Ruta 52 antes de Salinas Grandes, passando por Tres Morros, mas acabamos errando o caminho numa discreta bifurcação. A estrada que devíamos seguir era mais estreita e uma placa indicava a Ruta 52 nessa que pegamos. Estavam paralelas, mas iam se afastando e só percebemos muitos quilômetros depois, quando olhei o navegador do celular e essa estrada nem estava no mapa.

No meio daquele lugar deserto não existe um ponto que se possa ter como referência, tudo é igual até onde a vista alcança. Encontramos um carro parado com duas argentinas que cometeram o mesmo erro. Conversamos e decidimos seguir por ali mesmo, afinal, pela indicação da placa, iríamos chegar de alguma forma, inclusive algumas camionetas vinham do sentido contrário, em alta velocidade, jogando muita poeira e areia para os lados, e em nós, claro. Era preciso a todo o momento mudar de lado na estrada procurando o lugar mais firme, havia costeletas enormes, além de trilhos formados por outros veículos com areia e pequenos cascalhos.

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Passamos pelo isolado povoado de Cobres, com pouco mais de 100 habitantes e dificilmente visitado, sob olhares curiosos dos moradores dali. Mais à frente paramos numa sombra, a única que achamos, ao lado de um morro. As argentinas passaram acenando. Tempo depois as encontramos paradas com o capô aberto. O carro delas ferveu! Mas elas nem faziam ideia do que tinha acontecido. Colocamos água que elas tinham no carro e uma garrafa pet das nossas, lentamente, enquanto ainda ficava borbulhando, esperávamos esfriar, tempo depois chegou também uma van e assim decidiram rebocá-las até a Ruta.

Por nossa parte seguimos viagem chegando ao asfalto depois de uns 140 km sob forte calor e muita poeira. Fomos então até Salinas Grandes, um salar de 212 km quadrados, cortado pela estrada. Dali fomos para Susques, enfrentando muito vento contra, e por vezes lateral, fazendo com que a moto não passasse de 60 km/h em alguns pontos. Chegando lá, em frente a um hotel uma Harley-Davidson 1.600 cc de Parauapebas, no Pará, do casal Markus e Laiane, que também iriam para o Atacama e foram nossa agradável companhia pelos próximos dias.

Paso Jama
Paso Jama

FRONTEIRA, AMIGOS E NOVOS LUGARES

Na manhã seguinte rumamos para o Paso Jama, que chega a 4.800 metros de altitude. Este foi o trecho mais frio da viagem, apesar de ter pouco gelo ao lado da pista. Paramos no posto antes da aduana para comer alguma coisa. Trâmites rápidos e logo alcançamos a placa da divisa Chile-Argentina. Daí em diante, o deserto mostrava sua beleza. Lagoas verdes ou azuis, formações rochosas contrastando com o céu mais azul que nunca, e mais à frente o vulcão Licancabur, que nos presenteia com sua beleza até San Pedro de Atacama, de onde pode ser visto de qualquer local da cidade.

A descida até San Pedro é brusca. Em menos de 50 km descemos 2.000 metros de altitude. Emoção indescritível descer a cordilheira e chegar ali, numa pequena cidade que mais parece um vilarejo, no meio do nada. Diferente de qualquer cidade turística que se possa imaginar. Destino de pessoas do mundo inteiro e, claro, motociclistas, apesar de que, nos dias que ficamos por lá, éramos os únicos. Nós e o casal paraense. A H-D deles foi guerreira nos passeios que incluíam trechos de chão, com areia e costeletas. Para nossa sorte, Markus é fotógrafo e fez algumas fotos nossas dignas de colocar em um quadro.

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Visitamos os Gêiseres Del Tatio e a aldeia Machuca com a van de uma das agências de turismo. É preciso sair antes das 5h da manhã para percorrer os 100 km de subida. Quanto mais cedo, mais frio e mais lindo o espetáculo dos gêiseres, jatos de vapor e água quente jorrando até 10 metros de altura. Fazia 6 graus negativos.

De moto, fomos ao Vale de La Luna, Reserva dos Flamincos e Lagunas Miñique e Miscanti, estas a mais de 4 mil metros de altura, com água de um azul magnífico e as montanhas com neve ao fundo. Voltando dali, já no trecho asfaltado, paramos em frente a uma placa do Trópico de Capricórnio para fotografar. Parou também uma van com turistas e nela estava uma sorridente americana que usa prótese na perna, assim como eu. Pensei um pouco, resolvi chamá-la, ainda em cima da moto levantei a calça e mostrei minha perna mecânica. Ela gritou sorrindo e se aproximou para tirarmos foto. Conversamos um pouco, nós, os turistas da van e o motorista, que também é motociclista.  Momentos que não têm preço.

Gêiseres
Gêiseres

A VIAGEM CONTINUA

San Pedro de Atacama tem muito a oferecer, mas precisávamos seguir. Ainda na companhia do casal do Pará, fomos para Antofagasta, no monumento La Portada, escultura natural em forma de portal, alguns metros adentro do Oceano Pacífico, e na Mano del Desierto, escultura de concreto enorme de uma mão saindo da terra, às margens da Ruta 5. Seguimos na direção sul pela Ruta 1 até Caldera, onde nos despedimos dos agora, com certeza, grandes amigos desse mundo das duas rodas.Eles seguiriam até Santiago e teriam muito mais estrada para retornar até o Pará. Mas ainda nos encontraríamos, por acaso, mais duas vezes, na estrada dias depois. Nós trocamos o óleo da Ténéré e depois seguimos por uma estrada de chão muito boa que vai beirando o Pacífico, deserta na maioria do percurso, e passa por pequenas localidades como Puerto Viejo e Huasco Bajo. Voltamos à Ruta Panamericana 5 em Vallenar e paramos em La Serena, de onde pretendíamos ir ao Paso Água Negra e voltar para Argentina, porém nos informaram que estava fechado e só abriria em novembro.

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Costa Pacífico
Costa Pacífico

ÚLTIMOS DIAS

Acabamos cruzando o Paso Cristo Redentor (ou Los Libertadores), passando pelos Caracoles, um trecho sinuoso, com uma sequência de curvas parecendo uma escada. Havia muita neve na beira da pista e nas montanhas ao redor. Com certeza um dos locais mais marcantes da viagem. Um desvio passa pelo monumento do Cristo, mas estava fechado pela neve. Como esse trajeto é muito movimentado ficamos duas horas na aduana. Muitos túneis de diversos tamanhos, principalmente do lado argentino. Dormimos em Uspallata, de onde ainda se pode admirar a beleza da Cordilheira, que no dia seguinte foi ficando para trás no espelho da moto, deixando saudade.

Fugindo das autopistas argentinas, de Mendoza seguimos até a Ruta 20, passamos pelo Camino de Altas Cumbres, lindo trecho entre Vila Dolores e Córdova, com muitas curvas, paredões de pedras e penhascos. Entramos no Brasil por Uruguaiana, chegando em casa com toda segurança. Foram 19 dias na estrada, 7.885 km rodados e milhares de imagens na memória que nenhuma foto será capaz de transmitir. Meu sonho se realizou.

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