O aventureiro Guga Dias, a bordo de uma Kawasaki Versys 1000 ABS, rodou por cerca de 9.100 quilômetros pelas estradas da Bolívia para testar a motocicleta utilizada ao limite, e atesta: a máquina é feita para esse tipo de aventura!

Texto e fotos: Guga Dias

Kawasaki Versys 1000 ABS

Tudo estava certo para motocar o Projeto Desafio Bolívia com uma Ducati Multistrada 1200 S Touring, ativada em julho de 2014 e que, atualmente, segue no auge dos seus 130.000 km rodados. Mas, a vida é feita de surpresas e de bons amigos que viabilizaram um contato com a Kawasaki Motores do Brasil, para quem apresentei o projeto e obtive a oportunidade de testar a Versys 1000 ABS, modelo 2018, em um roteiro de 9.100 km.

Sempre oriento os amigos a nunca comprarem uma moto nova às vésperas de uma longa viagem. É preciso testar a motoca, entender sua dinâmica, criando familiaridade e certa cumplicidade ao descobrir todos os seus limites. Em minha opinião, tirar a moto da concessionária e colocá-la na estrada rumo ao destino dos seus sonhos pode trazer uma série de situações adversas, desde desconforto, frustração e arrependimento na escolha do modelo. Ou, no pior dos casos, um acidente pelo simples fato de não conhecer direito a força e a ciclística do brinquedo.

Porém, contrariei os meus princípios e abracei a Versys, tacando-lhe um beijo sem ao menos nos conhecermos direito. Há certas oportunidades que não podemos perder por conta de crenças pessoais.

Equipamos a moto com protetor de motor, mala de tanque e ferragens GIVI, encaixei os meus baús laterais e traseiro Trekker Dolomiti, mais uma bolsa de 30 litros para roupas de frio, e partimos para a estrada.

O mundo ao seu redor

Montando na motoca, a primeira coisa que vemos é o para-brisa pequeno e valente, que deu conta do serviço e manteve a turbulência contida ao acertar o meu capacete. O painel, bem posicionado e integrado à carenagem frontal da moto, mistura o analógico com digital, e só não é mais interessante do que a simplicidade da instrumentação. De um lado o ponteiro indica a rotação do motor, do outro, as barrinhas de nível de combustível no tanque margeiam a indicação de marcha, a velocidade e outros dados. Com um botão na manopla esquerda, é possível navegar pelo hodômetro total, trip 1 e trip 2, ver a média de consumo atual e parcial, a autonomia em km, considerando a quantidade de combustível no tanque, temperatura do motor e ambiente, bem como acesso aos modos de entrega do motor em full e low, assim como os três níveis do controle de tração.

Quando selecionado o modo full, a moto entrega todos os seus 120 cv, enquanto que em low, a potência cai para casa dos 100 cv, economizando combustível e mais adequado para cruzar grandes centros urbanos. Confesso que não usei esse modo ao longo da viagem, porque o consumo da moto foi muito satisfatório, como veremos mais adiante. Quanto ao controle de tração, me recomendaram usá-lo no modo 2 quando a moto estivesse em full, e modo 3 quando estivesse em low – a justificativa era não deixar o motor tímido, controlando a entrega na configuração full/3, mas eu particularmente acho isso controverso, apesar de ter seguido a orientação.

Saí feliz de uma situação em que o controle de tração me salvou de um tombo, quando, voltando de Torotoro, funcionários acabavam de jogar água na pista de terra, para baixar a poeira. Em uma curva muito fechada coberta de lama, a moto começou a escorregar de lado, e senti a roda controlar a entrega, dando travadas no timer certo para bater o pé no chão, retomar o equilíbrio e sair da parte mais lisa. São aqueles momentos de 5 segundos em que atribuímos sorte à tecnologia eficiente.

Quase perrengue

Contraditoriamente, com relação à marcação de combustível no tanque e autonomia, não senti muita confiança nas informações apresentadas no painel. Não sei até que ponto a excelente qualidade da gasolina boliviana (97 octanos), somada à pressão atmosférica, interferiu na leitura dos dados. Mas a estimativa de autonomia km/tanque comeu bola em duas situações distintas.

Em certo trecho da viagem, olhei para o painel e nele apontavam 136 km até a pane seca, mais duas barrinhas de nível de combustível no tanque. Assim que uma barrinha sumiu e entrou na reserva, os 136 km de autonomia se transformaram automaticamente em 60 km, numa mudança de mais de 50% na estimativa. Não foi um perrengue porque eu conhecia a estrada e logo parei, completando o tanque com 19 litros e meio, dos 21 totais. Com a gasolina que eu tinha, daria para rodar mais 36 km, e não os 60 indicados – isso sim poderia ser um perrengue.

A segunda situação eu não entendi por que ocorreu, mas ao atingir 30 km de autonomia, essa informação some do painel e você não sabe o quanto falta para a pane seca. No lugar dos 30 km, aparece: – km! Você tem que conhecer bem a moto para não entrar no Modo “Desesperadus” quando estiver em uma estrada desconhecida. O remédio é saber disso, ter conhecimento real do consumo da motoca e tirar a mão quando este nível chegar. Muitos de nós motociclistas viajam com galão de combustível, independentemente do modelo de moto e tamanho do tanque. Então não é mais um problema essa informação confusa. Resta saber se foi um erro pontual no modelo usado neste teste, ou em série.

Motocando

Poucos pilotos sabem disso, mas quando adquirimos uma moto, podemos fazer ajustes dentro de padrões seguros informado pelo fabricante, como a inclinação do guidão, altura da mesa, e até altura da suspensão traseira. Mas, normalmente, nos adaptamos à máquina e não o contrário, e isso, às vezes, causa desconforto na adaptação. Já passei por isso quando migrei da Honda Shadow 600 para Suzuki V-Strom 650, e salvo a mudança total de ergonomia, também não ajustei a moto, e repeti a façanha com a Kawasaki Versys 1000 ABS.

Do modo como ela veio de fábrica viajei 9.100 km de forma confortável, a não ser pelo banco que me doeu a bunda por 2.000 km. A posição dos pés e a flexão dos joelhos, a distância do guidão, que deixa os cotovelos levemente dobrados e o antebraço na horizontal, oferecem uma moto na mão, gostosa de pilotar em trechos retos, e confiável e divertida nas curvas. Aliás, o guidão esterça em um ângulo que, no trânsito, faz muita diferença.

A Elda, minha companheira nessa saga, ficou impressionada com o espaço que a garupa tem nesta moto. Segundo ela, o melhor espaço da categoria. O banco em módulo único, mas com dois níveis, deixa a garupa mais alta que o piloto, liberando a vista. Ele é mais largo nesta parte, e por conta da estrutura do chassi, a fixação do baú traseiro não ocupa um centímetro sequer do banco, dando real espaço e conforto para quem viaja, aproveitando 100% da paisagem.

A suspensão traseira é ajustável manualmente de acordo com a carga, e, no nosso caso, girei a rosca de ajuste até o final. No começo me pareceu ainda um pouco mole, mas em poucos quilômetros essa impressão havia passado e sentia que já dominava completamente a ciclística da moto, entrando tranquilo em curvas, retomando velocidade e ultrapassando sem novidades. Viajamos por estradas com asfalto lisinho e esburacado, terra batida, areia fofa, algum cascalho, salinas e muita pedra compactada. Não posso dizer que não sentimos diferença entre os tipos de piso, mas garantimos que a Versys1000 vai a todo terreno sem questionar – guardando o bom senso, pois se trata de uma moto Touring, para o asfalto, então, nada de entortar os aros de liga fazendo off road com a motoca, ok?

Off road

Fomos para fora da estrada como sempre fazemos nas nossas viagens. Se a estrada acaba, continuamos, com respeito aos limites do equipamento, mas seguimos, e nunca tivemos grandes problemas. Desta vez os retentores estouraram na volta para casa, entre Campo Grande e Três Lagoas, quando uma chuva torrencial nos fazia seguir a luzinha de um caminhão, que jorrando um spray de água, me deixou cego, quando atropelamos um buraco sei lá de que tamanho. Em uma oficina do interior, consertamos por R$ 450,00 (peças e mão de obra).

O desafio de pagar essa manutenção barata não foi nada perto de pilotar uma moto com quatro canecos pela primeira vez na vida. Sempre me disseram que precisava esperar o motor encher para sentir uma final dos sonhos, mas esse motor da Kawasaki não tem nada de bobo, essa entrega é mais rápida do que eu pensava, não demorando uma vida segundo relatos românticos. Ele é ágil e esperto, e sim, a final dele é um sonho. A impressão é que, mesmo depois de acabar o cabo, a moto continuará em aceleração infinita, por que não dá sinais de que vai reduzir.

Não atingi altas velocidades com ela por vários motivos: primeiro porque peguei a moto com meros 1.400 km, ainda em processo de amaciamento do motor, segundo por que cerca de 60% do nosso roteiro foi através da Cordilheira dos Andes, e correr num lugar desses não é lá muito inteligente (ainda mais com a mulher na garupa). Mas, a moto não me deixou na mão nem na altitude, onde foi soberana no consumo econômico. Para se ter uma ideia, com gasolina do Brasil, a moto começou a viagem durona, fazendo 16 km/l, e terminou macia, com 18,9 km/l. Na Bolívia, rodando na casa dos 100 km/h, o consumo bateu os incríveis 27 km/l em aclive. Falando em consumo econômico, no painel aparece um símbolo que indica que a velocidade atual está no melhor ritmo para um consumo baixo de combustível.
Não existe fórmula, pois depende da rotação do motor, velocidade, tipo de pista, gasolina, mas fique atento ao painel, quando o símbolo aparecer abaixo das barrinhas de combustível, mantenha o toque.


Manutenção

Além da troca dos dois retentores no fim da viagem, troquei o óleo aos 4.900 km da moto – o recomendado era aos 6.000 km, mas antecipei diante da facilidade de encontrar o produto, e a previsão para aonde iríamos. Sem mistério: 3 litros de óleo semi-sintético 10W40 e estrada. A relação, que muitos reclamam, eu gosto de cuidar, limpando com Motul C1 a cada 800 km (ou antes, em caso de chuva) e lubrificando com Motul C3 a cada 400 km rodados. Com esse trato, entreguei a moto sem ajuste na corrente, e com uma vida útil de pelo menos mais uns 25.000 km.

O pneu T30 da Bridgestone atingiu a marca TWI aos 6.500 km, muito pouco para um pneu de moto Touring. Eu esperava um pouco mais do pneu, mas mesmo assim ele não me deixou na mão. É claro que, a partir deste ponto, reduzi a velocidade nas retas e peguei muitas curvas  e chuva no caminho de volta, o que certamente contribuiu para terminar a viagem, ainda que com o pneu em forma de trapézio.
Em roteiro predominantemente reto, sugiro a troca por um pneu mais duro.

No fim, fizemos uma viagem segura, confortável e econômica no que diz respeito ao consumo e à manutenção da moto.
Ela respondeu às nossas expectativas à altura, encarando trânsito nas grandes cidades bolivianas sem ferver no meio das pernas, deitando em curvas alucinantes na Cordilheira dos Andes, e rodando suave, sem trepidações ou engasgos. A última grande vantagem é que, após uma hora na oficina, ela já estará pronta para mais uma aventura. A informação que tenho é que ela seguirá agora para Mendoza, na Argentina, nas mãos de outro piloto sortudo.

Menos é mais!

A Kawasaki Versys 1000 ABS é o tipo de moto que eu chamo de “pé de boi”. Você confere o nível do óleo, coloca gasolina e dá a pista, sem um milhão de sensores e botões para ligar e desligar. A moto não vem com piloto automático, manoplas aquecidas, módulos de pilotagem, controles de ABS, nada disso. É uma máquina simples, forte, que proporciona o mesmo divertimento que as motos Premium.

A dirigibilidade da motoca é fantástica, possui um bom centro de gravidade e peso distribuído, o que ajuda a não deixar a frente “boba” quando carregada com baú traseiro e garupa. Equipada com um pneu traseiro 180/55 17 (73W), possibilita deitar a motocicleta nas curvas com segurança, facilmente perto do limite – vai da experiência do piloto. Eu me diverti muito percorrendo um traçado pela Cordilheira dos Andes, que nos ofereceu um roteiro com cerca de 20% de retas, no máximo.

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