Partindo de Porto Velho (RO) rumo a La Paz, na Bolívia, a piloto Suzane Carvalho percorreu trechos repletos de desafios e a temida Estrada da Morte
Texto: Suzane Carvalho
Fotos: Suzane Carvalho e Antônio Marcel
Estrada da Morte
Esta aventura começou às margens do Rio Madeira, em Porto Velho (RO), ponto de partida para o que foi um de meus maiores desafios sobre duas rodas. Até La Paz, na Bolívia, seriam percorridos aproximadamente 1.500 quilômetros de muita terra, pedra, cascalho, seixo e areião. E como sou “menina do asfalto”, criada no Rio de Janeiro, o desafio parecia ser maior.
Primeiros passos
Minha companheira para essa aventura foi uma Honda XRE Rally sem ABS e com pequenas modificações, como guidão mais alto, protetores de manetes, bagageiro preparado para receber mochilas, pneus Rinaldi Extreme e óleo das suspensões com maior viscosidade, para deixá-las mais duras e resistentes para aguentar melhor a alta temperatura provocada pelos trancos, que, ao longo do caminho, não seriam poucos.
Meu guia foi o piloto de rally João Tagino, dono de uma empresa de turismo de aventura sobre duas rodas, a Tagino Adventure Tour. Como esta foi minha primeira viagem em grupo, posso afirmar que aprendi bastante, inclusive com as dicas de pilotagem que vez por outra me passavam. Também aproveitei minha passagem por Porto Velho para conhecer a cidade e fazer palestras sobre segurança no trânsito no Colégio Objetivo e também na Auto Escola Harmonia, e fiquei bastante feliz com a receptividade do público. Depois chegou a hora de começar a aventura.
Cruzando a fronteira
Como a XRE já estava preparada para a terra, fiz os 335 km do trajeto Porto Velho a Guajará Mirim, na fronteira com a Bolívia, com uma Honda Transalp, que peguei na noite anterior. Após 114 km rodados, parei para abastecer e ela havia consumido 7 litros, o que deu uma média de 16,28 km/l.
No caminho parei para conhecer a praia artificial Jaci Paraná, no Rio Jaci, e fiquei impressionada com o seu tamanho.
Enquanto carregávamos as motos na balsa, para a travessia do Rio Mamoré, fomos até o escritório da Polícia Federal para registrar a saída do Brasil. Depois cruzamos para Guayaramerín, na Bolívia, em balsa da Marinha do Brasil. A balsa de pedestres tem horários regulares e tanto bolivianos quanto brasileiros atravessam o rio para fazer compras.
Já na Bolívia, fizemos a imigração das motos e também a nossa. O processo é um pouco lento e durante esse tempo aproveitei para conhecer a cidade e o grupo que viajaria comigo a partir dali. A cidade é pobre e tem um comércio local movimentado. O principal meio de transporte da população é a motocicleta, que carrega famílias inteiras: de bebês recém-nascidos a senhoras de idade, muitas vezes, todos na mesma moto.
Estávamos no dia 5 de agosto, véspera da festa da Independência boliviana, que foi proclamada por Simón Bolívar, em 1825. Assistimos a desfile de barcos, de bandas, escolas e de oficiais da Marinha boliviana. Os 110 km seguintes até Riberalta fiz já na Honda XRE Rally que estava com preparação e pneus para off-road. E como já havia anoitecido, fomos todos devagar.
Riberalta a Rurrenabaque
A festa da Independência continuava nas ruas e tomamos o café da manhã em meio a desfiles, em um restaurante local.
Parti então para o meu maior desafio sobre uma motocicleta: rodar 510 km de muita terra e pedra até Rurrenabaque. Como a estrada estava em boas condições, em alguns trechos andei acima dos 100 km/hora.
O primeiro abastecimento ainda foi em um posto, com bomba de combustível, mas a partir de então, passamos a comprar a gasolina em garrafas PET de dois litros e nós mesmos abastecíamos as motos. Vale lembrar que, devido à poeira, íamos em duplas distanciadas em pelo menos 500 metros, umas das outras.
Notei que as árvores do caminho pegam a cor da poeira da estrada e ora são vermelhas, ora adquirem tonalidades laranja, marrom ou cinza, dependendo do tipo de piso.
Conforme saíamos do Chaco em direção às Cordilheiras, a paisagem foi mudando da terra para a pedra e o seixo. Andávamos um pouco mais juntos e mais devagar, mas mesmo assim a velocidade beirava os 70 km/hora. No grupo havia pilotos com experiência em competições de rally, e me senti bastante à vontade ao lado deles.
Nesse ritmo chegamos ao Hotel La Isla de Los Tucanosque, um oásis em meio às montanhas de pedra. Rurrenabaque está a apenas 200 metros de altitude e tem menos de 17 mil habitantes. Fica onde o Rio Beni faz a curva e é ponto de partida para aventureiros que vão ao Parque Nacional Madidi.
Rurrenabaque a Coroico
Nosso roteiro inicial previa chegarmos a La Paz no terceiro dia de viagem, mas alguns imprevistos, inclusive uma corrida de motos no caminho, em Piquendo, nos fez parar em Coroico, onde chegamos ao anoitecer e não tínhamos reserva em nenhum hotel. Coroico tem 19 mil habitantes e já está na Cordilheira dos Andes, a 1.685 metros de altitude. O centro da cidade é arrumadinho, tem uma bela praça e acabamos por encontrar lugar no Hotel Gloria, também um bom hotel que fica em meio às montanhas, com um visual belíssimo, piscina, estacionamento e restaurante.
Estrada da Morte
O quarto dia da viagem estava reservado para emoções ainda maiores. Subimos 3.000 metros e a temperatura mudou muito durante o percurso. Coloquei uma underwear mais pesada e balaclava de duas camadas. Mas dispensei o casaco. De Coroico a La Paz são apenas 104,5 km, mas posso afirmar que esses foram os 100 km mais emocionantes da minha vida.
Em dois destes quilômetros descemos 1.200 metros. Em outros sessenta e três quilômetros, subimos a 3.600 metros. A subida da Estrada da Morte é constante, sem ladeiras íngremes. É um caminho estreito, com muita pedra solta, riachos e até cachoeiras pelas quais passamos por debaixo. A cada parada com a moto, eu me deleitava com o visual. Senti-me abraçada pela natureza. Tudo muito deslumbrante. A estrada é um corte em meio a montanhas perpendiculares. Nos últimos 10 km a neblina forte deixou ainda mais emocionante o final.
Já no asfalto, e após fotografar na placa que indica “Ruta de la Muerte/Death Road”, continuamos a subir até 4.800 metros e minhas mãos gelaram. Depois chegamos ao lago “Laguna Estrellani” a 4.655 metros, onde a mistura de cores fez tudo parecer uma pintura.
Daqui para frente, com a alma refrescada, deu até para brincar um pouco mais com a moto, fazendo as curvas em descida da estrada de asfalto.
Descendo para La Paz, no meio da Carretera 3, cruzamos mais um desfile e festa boliviana. Ali se comemorava o dia da Virgem de Las Nieves. A paisagem então mudou uma vez mais e passou do cinza com verde para o marrom claro. Entramos em Nuestra Señora de La Paz pelo norte na entrada da cidade, em meio ao trânsito e mais desfiles coloridos.
Chegamos ao hotel Camino del Sol ao fim do dia. Chá de coca esperava pelos hóspedes, para amenizar o efeito da altitude. Até então eu não havia sentido nenhuma mudança em meu organismo. Apenas frio e narinas ressecadas.
Vitória
No quinto dia da viagem conheci La Paz, uma cidade em meio a pedras. Vi sua grande quantidade de pontes, viadutos e o estádio Olímpico Hernando Siles.
Ali vi meus desafios vencidos, objetivos alcançados. Essa foi sem dúvida a viagem mais maravilhosa de minha vida. Para quem tinha medo de andar de moto até em estacionamento com chão de pedrisco afirmo que essa foi uma vitória e tanto para mim. Por isso digo: não deixe de fazer aquilo que você tem vontade.
Faça! Viva! Isso é uma das coisas mais maravilhosas da vida: quanto mais a gente vive, mais descobre que existem mais e mais coisas para a gente descobrir e viver.
As paisagens maravilhosas que vi, os lugares lindíssimos pelos quais passei, o relacionamento e a viagem em grupo foram fantásticas. Infelizmente, não é possível mostrar tudo em uma reportagem, mas aqui vai a dica: só mesmo fazendo esse roteiro você terá a ciência do quão bem ele faz!
Suzane Carvalho é jornalista e realiza testes e reviews de carros e motos, que publica em seus sites http://suzane.com e http://suzane.tv.
Como piloto de Motovelocidade, Suzane foi, em 2014, campeã da categoria Máster da Copa Honda CBR 500R.No automobilismo, é campeã de diversas categorias e foi a primeira brasileira a competir na Europa e América do Norte. Entrou para o Guinness Book e Enciclopédia Barsa por ser a única mulher no mundo campeã de Fórmula 3.
É autora do primeiro livro de técnicas de pilotagem e acerto de chassi de Kart publicado no Brasil e coordena um Centro de Treinamento de Pilotos, onde é diretora técnica e instrutora de pilotagem de competição e de direção defensiva/evasiva para carros e motos.
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