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Em uma era marcada pelo racismo e pelo conservadorismo, Bessie Stringfield ignorou todos os obstáculos e tornou-se a primeira mulher, e ainda por cima negra, a cruzar os Estados Unidos de moto. Mas este não foi seu único feito.

Certamente você já ouviu falar sobre segregação racial e preconceito, mas essa era uma parada muito sinistra que rolava nos Estados Unidos num passado recente. Hoje pode até parecer mentira, mas na época mais casca grossa, os cidadãos negros eram proibidos de andar em determinado lado da rua e de entrar em certos estabelecimentos, entre outras aberrações que enchem de vergonha a humanidade.

Agora pensa uma mulher, negra, viajando sozinha de motocicleta pelo interior dos Estados Unidos? E para colocar ainda mais pimenta nesse caldo, estamos nos anos 30 e 40, época em que “para moças de boa reputação, não era recomendado andar de moto”. Imaginou o cenário?

Pois foi exatamente isso que Bessie Stringfield desafiou, o que a fez tornar-se a primeira negra a cruzar os Estados Unidos numa motocicleta – e ela fez isso mais de uma vez, viu?

A sua incrível e fascinante história está contada no livro “Hear Me Roar: Women, Motorcycles and the Rapture of the Road”, sem tradução ainda para o português, escrito por Ann Ferrar, que a conheceu em 1990, apenas três anos antes de sua morte. O que trazemos aqui foi baseado em um artigo escrito por ela e postado na página do Facebook em homenagem à esta heroína do mundo das motos.

Mas para contar essa história, vamos voltar no tempo…

Abandonada

Bessie Stringfield nasceu em Kingston (Jamaica), no dia 5 de março de 1911. Sua mãe morreu em seu parto e segundo ela, seu pai a levou ainda bebê para Boston (Massachussets), onde a abandonou quando tinha 5 anos de idade.

Bessie revela ter sido adotada por uma irlandesa que deu a ela tudo que precisou em sua vida. Aos 16 anos, Bessie pediu e ganhou sua primeira moto (uma Indian Scout 1928), enquanto estava na High School. “Naquela época, boas garotas não andavam de moto, mas eu sim!”, revela. Mesmo sem nunca ter recebido nenhuma instrução sobre como pilotar, Bessie montou no seu presente e saiu acelerando, para espanto de sua mãe adotiva.

Mas tão importante para Bessie quanto sua moto, foi o outro presente que sua mãe lhe deu: o conhecimento de Jesus, a quem chamava de “O Homem que Subia as Escadas”, e a fé que Nele aprendeu a depositar. Ela insistia que fora Ele quem lhe havia dado o dom de pilotar – e ninguém duvidava disso.

“Minha mãe me dizia que se quisesse algo eu deveria pedir ao Nosso Senhor Jesus Cristo, e eu fazia isso”, contou em um de seus depoimentos que foram gravados em um antigo gravador cassete. “Ela me ensinou que Ele está comigo o tempo todo, inclusive agora, e quando eu pilotava, eu sempre O enviava à minha frente. Eu era muito feliz quando estava em uma moto”, relembrava.

Sua primeira viagem aconteceu quando ela tinha somente 19 anos e se deu a partir de uma decisão, no mínimo, curiosa: ela pegou uma moeda, jogou-a para cima sobre um mapa aberto dos Estados Unidos, e rumou para onde ela caiu.

A partir daí vieram muitas outras: ela conheceu 48 dos 50 estados americanos e para isso, teve de dormir muitas vezes “deitada” sobre sua moto, com o guidão servindo de travesseiro e os pés apoiados no para-lama traseiro. “Se você fosse uma pessoa de pele escura viajando pelo país naquela época, muitas vezes você não ia encontrar onde pernoitar, mas eu sabia que o Senhor estaria tomando conta de mim. Se eu encontrasse outros negros, eu ficava com eles, mas do contrário, eu dormia em algum posto de gasolina em cima da moto”.

Para bancar as despesas nas viagens, quando acabava o dinheiro, Bessie fazia truques em parques de diversão e outros bicos que lhe fizessem conseguir alguns trocados para a comida e a gasolina.

Mensageira de guerra

Durante a II Guerra Mundial (1939 – 1945), Bessie trabalhou como mensageira do Exército norte-americano. Ela era a única mulher em um destacamento composto somente por negros e conseguiu sua vaga depois de passar por um intenso treinamento, que entre outras coisas, lhe ensinou a construir uma ponte com cordas e cipós para atravessar pântanos – algo que nunca precisou fazer.

Para desempenhar esta tarefa, Bessie usava uma Harley-Davidson azul que chamava carinhosamente de “61”; imagine o que era uma negra, chegando em uma moto, em um ambiente eminentemente masculino, toda suja de poeira e fuligem?

Assim que a guerra acabou, Bessie mudou-se para a Florida, onde comprou um apartamento em um subúrbio da cidade. Lá passou a trabalhar como enfermeira e fundou o Iron Horse Motorcycle Club. Disfarçada como homem, chegou a vencer algumas provas de flat track, mas quando descobriam que tratava-se de uma mulher, não lhe entregavam a grana prevista na premiação. Logo ganhou o apelido de “Negro Motorcycle Queen” e mais tarde, de “Motorcycle Queen of Miami”.

Bessie divorciou-se seis vezes e não teve filhos –em um de seus casamentos, ela perdeu três filhos e nunca mais voltou a engravidar – e tinha em seus cachorros a companhia que a seguiu até seus últimos dias de vida.

Em sua última década de vida, Bessie conviveu com uma doença cardíaca que aumentou em três vezes o volume de seu coração, o que a impediu de exercer a sua grande paixão, mas mesmo sem pilotar fisicamente, ela o fazia mentalmente ao reviver suas lembranças, pois sempre se referia a estes momentos no presente, como se estivesse ainda pilotando.

Ao longo de sua longa vida, Bessie teve 27 Harleys (fora a Indian). Ela faleceu em 1994 e em 2002 seu nome e seus feitos entraram para a Galeria da Fama da AMA (American Motorcyclist Association). Desde 2014, um passeio reúne mulheres durante o mês de maio para homenageá-la e manter vivos seus feitos e sua memória (neste ano, devido à pandemia do coronavírus, o passeio vai acontecer entre os dias 23 e 27 de setembro).

Bessie foi uma mulher à frente de seu tempo, que desafiou a tudo e a todos por causa de seu intenso e incontrolável desejo por liberdade, algo que só uma motocicleta pode saciar.