Imprevistos acontecem em longas viagens de moto, mas esta jornada foi uma sucessão de desafios!
TEXTO E FOTOS: ROSA FREITAG
Em meados de 2018, uma “rider” inglesa me contatou por meio do Facebook, querendo “motocar” pela América do Sul. Eu estava alugando minhas motos de maneira informal para passeios em Campos do Jordão – assim, por que não organizar uma viagem internacional? O Peru sediaria o Rally Dakar em janeiro de 2019 e propus um roteiro pela Bolívia e Peru, saindo de São Paulo. Lynne convidou sua amiga Trish e, por WhatsApp, definimos os marcos principais e o trajeto para 23 dias de viagem. Se já é complicado fazer uma viagem longa entre amigos, quando as diferenças de hábitos, personalidades e o stress da convivência podem azedar as relações e o próprio passeio, como seria lidar com duas “gringas” desconhecidas que não falavam uma palavra em idiomas latinos? Uma vez que conheço bem os britânicos (morei lá por mais de uma década), encarei o desafio com otimismo.
O motociclismo na vertente de “expedição” pressupõe que uma “irmandade” nos torna similares. Assim, ao compartilharmos imagens do Salar de Uyuni, Estrada da Morte, Rally Dakar e Machu Picchu (os “marcos”), entramos em sintonia. Trabalho, relacionamentos, crenças e diferenças de idade se tornaram irrelevantes. Sugeri que elas consultassem um médico sobre o “mal da altitude”, pois estaríamos, por vários dias, acima dos 4.000 metros, e insisti que um bom condicionamento físico seria importante para aguentar metas diárias de até 700 km, com doses de off-road e extremos de calor e frio. Concordamos em gastar pouco com hospedagem, dividindo quartos triplos em hotéis simples. Pesquisei e providenciei a documentação para autorizar terceiros a conduzirem minhas motos nos outros países: uma “Carta Poderes” apostilada em cartório.
Elas chegaram a São Paulo no dia 31 de dezembro, à noite, e as malas só vieram no dia seguinte, devido ao atraso em um voo de conexão. Fomos passar a virada do ano no Guarujá, pulamos sete ondas e só ligamos as motos no fim da tarde de 01 de janeiro, sob uma típica enxurrada do verão paulistano. Meta de quilometragem do primeiro dia já não rolou, mas o planejamento contava com três dias de “gordura” para eventuais atrasos.
MOTOS E MITOS
Em 2012, adquiri uma BMW F650GS 2010 bicilíndrica de 800cc, minha primeira Big Trail – e, com ela, fui à Bolívia em 2016, já customizada no estilo “scrambler”. Em 2013, comprei a BMW G650 X Country 2009, monocilíndrica e mais leve, mas não tive coragem de me desfazer da GS. E no ano passado, agreguei à “frota” uma Suzuki DRZ400 2007 (uma motocicleta de enduro) emplacada. A intenção era usar em estradas de terra, mas a necessidade exigiu que eu confiasse nela – carburada, sem painel – para rodar 7 mil km pela América do Sul. As BMW já estavam prontas, até com tanques auxiliares. Troquei pneus, pastilhas e coloquei óleo sintético. Já com a DRZ400, fiz testes com vários tamanhos de pinhão e coroa, troquei cabos e discos de freio, coloquei tanque de 20 litros, bolha, instalei o GPS como painel e aprendi um pouco sobre a mecânica para trocar o óleo a cada 2 mil km. Outra preocupação foi a perda de potência e falhas na altitude. Ao pedir opiniões nas mídias sociais, aprendi que colocar cebolas na caixa do filtro de ar ajudaria a manter o desempenho!
Na prática, quando atingimos os 4 mil metros, na região de Potosí, todas as motos “reclamaram” um pouco, às vezes exigindo manter a rotação alta para não engasgar ou morrer, e a carburada foi a que menos se afetou – somente com a altitude em torno de 3.800 metros ela pedia giro mais alto em baixa velocidade. Um acessório que ficou obsoleto para mim é o GPS. O Garmin Zumo 660 resistiu a dez anos de viagens, chuva e trepidações, mas os aplicativos de celular (que criam a melhor rota em tempo real considerando o trânsito, obras e desvios), como o Google Maps, brilharam. É preciso ter dados ativos, mas, no Peru, você compra um chip com pacote de dados para um mês por R$ 30,00. Ou calcule a rota em um local onde tenha Wi-Fi. Usei um suporte de garra com tomada USB e, no caso de chuva, cobria o celular com um saco plástico. O GPS, mesmo com mapas atualizados, levava a postos de gasolina inexistentes, sugeria as piores rotas e, quando parou de funcionar, após uma chuva forte, um fusível queimou e ocasionou o esgotamento da carga da bateria. Aí entrou em cena um equipamento indispensável: um powerbank, que serve para carregar celulares e câmeras e dar partida em moto por meio de um cabo com garras. Acessei a bateria, garras nos polos, apertei o botão e…braaap!
BOLÍVIA: IMPEDIMENTO E PERDAS
Entramos na Bolívia por Corumbá e, no caminho, apreciamos o Pantanal, os jacarés e as pontes da Estrada Parque. Chegamos à fronteira na manhã de 04 de janeiro e lá ficamos até as 17h. Filas para carimbar o passaporte de saída do Brasil e a entrada na Bolívia. Para as motos, preenchimento de formulários com a indicação dos condutores, cópia dos documentos, dos passaportes… e mais uma fila em outro escritório, que fecha para almoço – quando nos atenderam, após as 16h, não quiseram emitir o documento de ingresso e registro no “Sivetur” das três motos, alegando que o sistema só permitia o registro do ingresso de um veículo por pessoa. Conversei com as meninas e decidimos seguir adiante apenas com o documento emitido para a DRZ400, à qual eu pilotava, já que eu estaria sempre presente e tinha minha “Carta Poderes” autorizando que elas conduzissem as motos.
Após 200 km, escureceu e entramos no vilarejo de Águas Calientes, que eu tinha marcado como local de interesse no Google Maps, e ficamos no camping de frente para as nascentes borbulhantes do grande rio de água quente (alugamos uma barraca com colchão de ar). O ideal é nadar à noite e ao amanhecer, e assim fizemos (relaxando para, no dia seguinte, tocar mais 600 km até Santa Cruz de La Sierra). Lynne foi mordida na perna por uma cadela e os locais, muito preocupados, a levaram a um posto de saúde para precauções contra raiva, mas lá não tinham a vacina. Na noite seguinte, fomos a um posto em Santa Cruz e soubemos que a raiva humana é comum na Bolívia. Se o cão agressor morresse no período de 14 dias, ela deveria fazer o tratamento com dez vacinas, uma por dia. Mas nos comunicamos e soubemos que a cadela continuava sã!
Após Santa Cruz, pegamos a Ruta 5, alternando trechos recentemente asfaltados com outros ainda de rípio (para a nossa diversão) e paisagens deslumbrantes, passando por Sucre e Potosí até Uyuni. O Salar estava alagado na entrada, mas seguimos o caminho dos jipes e nos divertimos no solo craquelado infinito e reverenciamos o monumento ao Dakar. Na saída, a GS atolou e uma van ajudou a rebocar. Quando fui retirar as cintas de reboque, a água salgadíssima da poça espirrou em meus olhos e, naquela madrugada, tive uma reação alérgica (achei que fosse ficar cega!). Um anti-histamínico que a Lynne levou me permitiu voltar a dormir, e no dia seguinte um colírio ajudou a desinchar as pálpebras.
O próximo destino seria La Paz, para fazermos a Estrada da Morte e seguirmos para o Peru para acompanhar o Dakar. A poucos quilômetros da cidade, um policial rodoviário nos parou e pediu os documentos de ingresso das motos. Expliquei que somente uma tinha tal documento, pois na fronteira não quiseram fazer para as outras. Disseram para aguardarmos – eles iriam contatar a fronteira, pois aquilo estava errado. Aguardamos mais de cinco horas sentadas na estrada e, uma vez que eles não obtiveram uma resposta via e-mail, nos escoltaram até a aduana central em La Paz, onde tive que assinar um “Termo de Comiso”. As duas BMW foram apreendidas, com a promessa de que eu poderia reavê-las na manhã seguinte. Quando voltei à aduana (uma grande repartição pública), só recebi informações nebulosas. Um funcionário sugeriu que eu fosse à Embaixada Brasileira. Falei com o Cônsul do Brasil em La Paz, que soturnamente me falou sobre vários casos de veículos de brasileiros que haviam sido confiscados sem êxito na recuperação. Segundo a lei boliviana, a falta do documento de ingresso classifica um veículo como “contrabando” – desse modo, ele pode ser apreendido e leiloado rapidamente. Sim: eu estava sendo acusada e penalizada por “contrabandear” minhas próprias motos!
Recorri às mídias sociais para obter contatos de pessoas que pudessem me auxiliar e os dias seguintes foram um redemoinho de incertezas. Muita gente bacana do Brasil e da Bolívia se prontificou a ajudar e voltei à aduana acompanhada por advogados outras três vezes, mas a situação se tornava cada vez mais diabólica, com falsas promessas de devolução das motos. Também me fizeram assinar um termo segundo o qual os veículos já eram classificados como contrabando – senti que, se insistisse mais, eles poderiam até me prender. Fiz uma procuração para o advogado e me foquei em “vazar” da Bolívia. E o que fazer quanto às duas inglesas, que estavam sem motos? Atônitas, mas dispostas a seguir viagem, elas se organizaram para irem aos próximos marcos do roteiro de ônibus e avião. Ainda em La Paz, alugaram duas Suzuki DR650 por um dia e fizemos juntas a Estrada da Morte, embaixo de chuva.
Despedimo-nos na manhã seguinte e segui em viagem solo com a DRZ400 rumo ao Peru. 80 km adiante – e a menos de 100 km da fronteira –, a moto parou. Eu sabia que era algum problema elétrico, pois, naquela manhã, precisei dar o “jump start”. Acenei para todos os carros que passavam e uma família de van me levou a um mecânico próximo, mas o sujeito ficou com preguiça ou medo de mexer na moto (mesmo uma 400cc é considerada um “motão” por lá). Assim, telefonaram para outro mecânico, que veio de caminhonete buscar a moto e solucionou o problema: pólo da bateria partido. Aproveitei para ajustar a corrente e completar a água do radiador. Estava difícil deixar a Bolívia! Mas o sol voltou e pude curtir o esplendor do Lago Titicaca no fim de tarde, fazendo a travessia de balsa a remo em Tiquina e uma refeição à base de truta em Copacabana (a original), já quase na fronteira. Na próxima edição, falarei sobre a viagem solo pelo Peru (e contarei novidades sobre a recuperação das BMW).
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