Baterista e aficionado por viagens de moto, o leitor Cristiano Fortereuniu essas duas paixões em uma aventura emocionante
Texto e Fotos: Cristiano Fortes
Como baterista, sempre admirei os grandes ícones deste instrumento: Alex Van Halen (Van Halen), Stewart Copeland (The Police), John Bonham (Led Zeppelin) e João Barone (Paralamas do Sucesso) foram minhas principais referências, mesmo ainda na infância, enquanto improvisava baterias em cadeiras, caixas de madeira, latas e sucatas de bicicleta (a coroa era o prato!), pois foi só quando recebi meu primeiro salário, aos 14 anos, que consegui comprar minha primeira bateria.
Quem conhece grandes bateristas do rock deve estar sentindo falta de outro nome importante nessa lista. Seu estilo inconfundível, virtuosismo e extremo bom gosto nos arranjos musicais fizeram com que sua sonoridade influenciasse profundamente minha vida como músico. Seu nome: Neil Peart, mundialmente conhecido como o baterista do Rush. Mais tarde, essa admiração aumentou quando descobri que ele dividia comigo uma outra paixão: a motocicleta.
Logo você irão entender como nossas histórias como bateristas e motociclistas se cruzam, mas antes, preciso contar como me tornei um aventureiro sobre duas rodas.
APETITE POR AVENTURA
Esta é uma paixão antiga, que começa com os passeios na garupa da bicicleta do meu pai e prossegue com minhas próprias bicicletas. Tive que resistir, durante muito tempo, a comprar minha primeira moto, devido às questões de segurança em função do trabalho como músico. Mas, em 2003, com a desculpa da economia de combustível, acabei adquirindo uma moto de pequeno porte. Um ano depois, com a aquisição de um modelo de maior cilindrada, a moto tornou-se algo essencial em minha vida.
A partir de 2003, comecei a ampliar os roteiros de passeio. Aos poucos, comecei a arriscar um pouco mais, optando por rotas alternativas em minha região. Em seguida, iniciei a leitura de vários relatos de viagens, nos quais alguns lugares me chamaram muito a atenção. Buscando mais informações sobre esses locais, acabei conhecendo o Chardô (Nelson Chardosin) e, mais tarde, o Rauen (Ricardo Rauen), dois aventureiros e escritores, além de grandes amigos que me auxiliaram na definição dos trajetos.
A primeira grande viagem foi em 2009, ao extremo sul da América, à qual batizei como “Projeto Fortes Ventos”. O objetivo era ficar trinta dias na estrada, tendo como pontos de referência os vulcões Villarrica e Osorno, Ilha de Chiloé, região dos Lagos, em Bariloche, Carretera Austral, CaletaTortel e Ushuaia, na Terra do Fogo. Porém, por conta de dois grandes imprevistos (problemas mecânicos na moto e uma crise renal aguda), não consegui concluí-la
A única coisa que me consolava era pensar que, se isso acontecesse mais ao extremo sul da Patagônia, não saberia como teria sido o desfecho de ter que lidar com problemas tão sérios, em lugares com muito menos recursos para atendimento. Essa aventura se tornou uma bela história repleta de detalhes e emoção. Penso que, futuramente, poderia render um livro.
Em 2011, no “Projeto Fortes Ventos II”, resolvi fazer um trajeto mais ao centro da América do Sul, pois sempre tive a curiosidade de conhecer lugares como o Aconcágua, Santiago e Viña Del Mar e percorrer, de moto, estradas nas quais pudesse visualizar o Oceano Pacífico. Outro ponto fundamental no roteiro seria o incrível Paso Água Negra.
Unindo duas paixões
Há algum tempo, vinha refletindo sobre como poderia unir as minhas duas paixões, mas sem a mínima ideia de como chegar a esse objetivo, pois uma bateria não parece compatível com o espaço de carga de uma moto. Porém, 25 dias antes da partida para esta viagem, visualizei a possibilidade, ao elaborar um instrumento reduzido e que fosse capaz de ser desmontado em pequenas partes, para ser transportado de moto.
Realizei essa primeira experiência com uma espécie de protótipo de bateria e escolhi alguns locais onde achei que seria interessante montá-la para tocar: Torres (RS), Caleta Puerto Oscuro (litoral do Oceano Pacífico, no Chile) e Paso Água Negra, na Cordilheira dos Andes, a 4.700 acima do nível do mar.
Um ano depois, em 2012, resolvi acrescentar algo especial ao “Projeto Fortes Ventos III”. Com a certeza de que era possível transportar uma mini-bateria (e agora, com um instrumento melhor confeccionado), a proposta da nova aventura seria fazer uma gravação em vídeo tocando uma música do Rush ao lado da Placa do “Fim do Mundo”, em homenagem a Neil Peart, meu grande mentor.
Geralmente minhas viagens eram solo, mas, nessa oportunidade, tive a companhia do grande amigo Fábio Copetti, que, na ocasião, realizou sua primeira grande viagem pilotando uma moto.
Iniciamos a aventura um pouco antes da virada do ano, no dia 28/12/11. Minha moto estava tão pesada que a suspensão traseira praticamente não trabalhava. Decidimos sair nesta data para chegar a Mar del Plata, na Argentina, a tempo de assistir à largada do Rally Dakar, que aconteceria na virada de ano para 2012. Foi muito divertido, nos dias seguintes, acompanhar o trajeto do Rally e, muitas vezes, ser confundido com os pilotos da competição. Um dos desconfortos de viajar durante os primeiros dias do ano naquela região, eram as frequentes situações de falta de combustível nos postos de abastecimento e o calor de mais de 40 graus que enfrentamos na província de La Pampa, na Argentina.
Nessa viagem, também aproveitei para passar novamente em Comodoro Rivadavia para reencontrar e demonstrar gratidão a algumas pessoas que me auxiliaram durante os problemas que enfrentei na primeira expedição. No percurso do dia seguinte, achei muito válida a visita ao Monumento Natural Bosques Petrificados e a réplica da nau Victoria, de Fernão de Magalhães, ambos na província de Santa Cruz.
Esse famoso trecho de rípio sempre me causou apreensão. O que eu não esperava é que, logo no início do trajeto, um dos suportes do pára-brisa da moto quebraria e, para não perder tempo arrumando, acabei fazendo todo o percurso com uma mão acelerando e a outra apoiando o para-brisa!
“É O FIM DO MUNDO!”
Ao chegarmos a Ushuaia, Fábio ficou assustado com minha ansiedade em ir imediatamente até a placa do “Fim do Mundo”. Realmente, aquele momento trazia uma carga de emoção. Em vista da minha primeira e frustrada tentativa, era grande a vontade de finalmente concluir aquele trajeto com êxito!
Uma vez que o local onde fica a placa tem uma grande circulação de pessoas, resolvi realizar a gravação alguns dias depois, logo ao amanhecer. Por volta das 7 horas, em uma manhã bem fria e nublada, montamos algumas câmeras e, com o meu fone, toquei três vezes a música para, posteriormente, escolher a melhor performance. Penso que deve ter sido muito estranho para quem passava por ali ouvir alguém tocando bateria por tanto tempo sem acompanhar a música (afinal, a trilha com a canção do Rush só podia ser ouvida no meu fone).
Finalizamos a gravação e, alguns minutos depois, a chuva desabou sem trégua, acompanhando-nos durante horas no trajeto da viagem de volta que iniciou naquele mesmo dia. No caminho, foram mais onze dias de viagem, passando por lugares incríveis, como, Torres Del Paine e Glaciar Perito Moreno, além dos desafios de percorrer parte da Ruta 40 – tudo isso, ainda com a mini-bateria na bagagem.
BOAS LEMBRANÇAS
Ushuaia foi um misto de emoções: primeiro, pelo fato de que a meta de chegar ao “Fim do Mundo” não fora alcançada na primeira tentativa (o “Projeto Fortes Ventos I”, de 2009); segundo, pelo desafio de percorrer essa imensa distância carregando uma mini-bateria na bagagem; e terceiro, por trazer essa energia de homenagear e expressar gratidão pelo legado de conquistas e superações que Neil Peart deixou para nossas vidas.
Quando idealizei essa proposta, não tinha certeza de que era possível realizá-la. Ao concretizar o projeto e ver as pessoas se sensibilizarem, fiquei muito feliz por contribuir, de alguma forma, para que outros acreditem em suas potencialidades e, desse modo, realizem seus sonhos.
Para assistir aos vídeos em homenagem a Neil Peart, digite “Projeto Fortes Ventos e Neil Peart” na barra de buscas do You Tube. Para conhecer mais sobre o trabalho e as viagens de Cristiano Forte, acesse www.cristianoforte.com.br
NEIL PEART, UMA LENDA DO ROCK
Nos anos de 1997 e 1998, Neil Peart, baterista da banda Rush, sofreu duas perdas irreparáveis: sua filha Selena, de 19 anos (que morreu em um acidente), e sua esposa, Jackie (vítima do câncer). No enterro da esposa, ele disse aos companheiros de banda que o considerassem aposentado. Tirou um tempo para si e, nos anos seguintes, rodou mais de 80.000 km de moto pela América do Norte e Central.
Essas aventuras foram descritas no livro “Ghost Rider: Travels on the Healing Road” (“Motoqueiro Fantasma: Viagens pela Estrada da Cura”).
Neil Peart retornaria ao Rush e às turnês em 2001, mantendo o hábito de viajar de moto. Durante o tour do Rush pela América do Sul, em 2010, Neil utilizou sua moto para viajar pelos locais dos shows, ao lado de seu amigo Brutus. Partiram de São Paulo, foram ao Rio de Janeiro, Buenos Aires e atravessaram os Andes até o Chile. Em um de seus relatos, ele fala sobre sua passagem por Santa Catarina, onde se perdeu e, sem ser reconhecido, pernoitou na pequena cidade de Itapiranga, às margens do Rio Uruguai.
Neil Peart faleceu no dia 07 de janeiro de 2020, após lutar contra um câncer no cérebro durante três anos.